A polêmica mais que rondou tanto o livro de Nikos Khazantzákis quanto o filme de Martin Scorsese. The Last Temptation of Christ parece ter sido concebido em 1953, quando da sua edição em formato de livro, às discussões mais aceleradas sobre a figura divina de Cristo e seu papel entre os homens. E mais tarde, em 1988, coube a Martin Scorsese lançar mais fogo à fogueira das discussões ao tecer um Cristo muito próximo ao criado pelo escritor grego, e dando a Willem Dafoe o personagem central do filme. Coberto de críticas, censura, e outras ações e adjetivos não muito apreciáveis, a trajetória de um Cristo desconstituído de sua divindade para ser constituído por um ser humano cravou fundo na alma da hierarquia da fé. Tal estremecimento, no entanto, não encontrou ressonância em outros momentos tanto anteriores a Scorsese quanto depois. Jesus de Nazaré de Franco Zefirelli é doce, suave, carismático e teve em Robert Powell a conjugação desses fatores. Houve empatia entre o que na tela se apresenta e o Cristo do diretor italiano. Por outro lado, A paixão de Cristo de Mel Gibson, e tende Jim Caviezel como protagonista, vai ao encontro de uma violência física e psicológica imensa que pode-se concluir que ser humano algum seria capaz de suportar. O filme de Gibson é todo em aramaico e latim, línguas da época. Não há aqui pretensão alguma de questionar posições, leituras, interpretações ou de tecer mais polêmica a um tema que a cada dia se revela novo aos olhos dos pesquisadores e historiadores e cada vez mais aprofundado ou não em fé pelas pessoas. Não se trata de entrar no campo da religiosidade, porém, apenas olhar o Cristo de Nikos e Scorsese em sua dimensão humana como tal e sua percepção enquanto humano quanto a questões características dos seres humanos como o medo, a tentação, a dúvida, a luxúria. A condição humana que Dafoe apresenta de forma convincente nos remete a questões atuais, que não cessam, sejam elas no ano zero a partir de C. e passados mais de dois mil anos vão permeando nossos atos como sociedade. Se houve lá atrás, segundo os relatos bíblicos e sobre os quais se debruça a fé, a intervenção do Estado, com apoio popular, para a condenação do prisioneiro por conspiração, por atos considerados políticos e subversivos, por ter uma visão de sociedade avançada e humana, hoje não nos distanciamos desses fatos passados. Se lá houve a pena de morte, hoje ela também existe. E é interessante sair um pouco de Cristo para que o olhar possa encontrar tais elementos nos ladrões que acompanharam o martírio do filho de Deus. Ali está configurada a prática da pena de morte. Hoje, há várias formas de não apenas o Estado, mas outros poderes e mesmo a sociedade, sentenciar á morte qualquer indivíduo. Não se trata de desejar ou estimular a impunidade, ao contrário, ao criminoso às penas da Lei. Trata-se sim de se avançar sobre o bem maior do ser humano que é a vida. Devemos refletir mais. Nesse sentido, não avançamos um único palmo. Continuamos, enquanto seres sociais, como a dois mil anos.
Alia-se à direção de Martin Scorsese, enfim, talvez um dos grandes trunfos do trabalho como um todo e objeto desta reflexão acima, a trilha sonora composta por Peter Gabriel. Trata-se de um belíssimo álbum de canções primitivas, nativas, originais, e mesclados com o moderno. Gabriel criou uma obra viva e independente. Embora inserida no contexto do filme torna-se dramática na medida exata e sensível. É uma verdadeira tapeçaria sonora, espiritual e penetra nos campos férteis da sonoridade e do espírito da Turquia, do Senegal, do Egito. Pode-se afirmar que é um disco oriental sem medo algum tanto em relação a geografia das composição quanto ao tempo histórico. vais ao cerne de uma época. Um trabalho magnífico de Peter, e revelador de sua índole pelo que há de música no mundo. Acompanhado de nomes como o paquistanês, já falecido, Nusrat Fateh Ali Khan, do brasileiro Djalma Correa, do senegalês Youssou N´Dour, do extraordinário baterista Bill Cobham, do baixista Nathan East, entre outros, a trilha segue um caminho único de identidade própria e sobretudo de universalidade. Gabriel em seu melhor momento, quem sabe. E fica uma trilogia capaz de nos fazer uma parada obrigatória à reflexão sobre a vida e sobre nós mesmos.