Joni Mitchell, mais que simplesmente folk

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Joni Mitchell é um ícone da folk music. Arrebatadora, traduziu em harmonias e versos mais que sentimentos. Suas músicas desvendam tanto quanto trazem a luz solar aos nossos dias. Recuperando-se de aneurisma sofrido, as notícias confundem. No entanto seu site oficial mantém viva a esperança de recuperação. Há poucos dias perdemos Chris Square, baixista do Yes. Nome referência no baixo em todos os tempos. E o Yes um dos grandes do rock progressivo dos anos setenta esmaece. A canadense deu um novo sentido ao folk, criou álbuns inesquecíveis, avançou, fez mesclas, com o jazz, com o rock, nâo se limitou a criar melodias, ingressou nas artes plásticas. Muitos dos seus discos têm capas com suas obras, encartes com suas obras. Uma pessoa extraordinária. Um criadora que nos faz pensar. Fica Blue, um trabalho exuberante, fonte permanente de ideias e conhecimento, para que possamos desfrutar sua sensibilidade.

Miniconto VII: San Vicente

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Aos setenta anos, San Vicente decide fechar os olhos. Entra na noite sem deixar as marcas dos passos. Está distante dos cheiros e dos pequenos fachos vividos. Havia se acostumado com o escuro. Desfaz a venda, os tons castanhos da íris se tornam estilhaços na memória. A segunda decisão vem com o horizonte: buscar o dentro, mergulhando na vida, para o início até o fim.

A lua recorta o vidro em listras que se alongam pelo piso de madeira. Olha as nuvens. É o começo. No dentro não existe tempo. E as vértebras das formas e das lembranças ganham sentido. O que havia perdido estava na luz das lâminas em cujos espelhos e reflexos se escondem pedaços densos do coração. Sobre o caminho, os trilhos gastos acomodam os velhos sapatos. A gaita de boca repousa no mesmo banco da estação de trem e as ruas continuam com suas luminárias à vela. A chama arde e desaparece ao amanhecer. Neste presente, descobre o futuro: o apagamento do passado. Vê a cerração chegar, cobrindo a terra e o campo. Deita sobre um dos trilhos, a cabeça envolta nos braços. Ali, tudo é urgente. O mundo de dentro se abre. A hora da escolha está próxima. A memória está em todos os lugares e em nenhum lugar. Levanta-se e entra na névoa avermelhada. Aos setenta anos, San Vicente sabe que a palavra é a única saída. Fecha os olhos sem se despedir. Há muito havia perdido o tempo. De dentro e de fora.

Música: Angus & Julia Stone – “Wherever You Are”

Dúo Fébula Y Aravenis : as guitarras do Prata

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A proximidade entre os rios Guaíba, do lado de cá, e do Prata, do lado de lá, nunca foi distância para mim. Sempre olho a Argentina e o Uruguai com a densidade de afeto que merecem. A história da minha vida tem toda essa gana que os platinos possuem, e minhas origens também têm suas vidas enraizadas por lá antes de se estabelecerem aqui. E tenho muitos amigos nesses lados todos. O Marcelo chegou pelo irmão, ambos “periodistas” de turfe, o roteiro dos grandes prêmios pela América adentro. E eu, apesar de pai jóquei e treinador, nunca fui um turfista no sentido vivo da palavra, embora sinta um amor infinito pelos cavalos. E o pampa me desafia, o imaginário incendeia e tudo o mais. Se não entrei nas pistas de corridas, caminho pela música, pela literatura, gostos dos cafés e do movimento dos porteños e orientais, gosto das livrarias que desvendam os mistérios da noite com suas portas abertas, assim como gosto do nosso mar, da nossa arquitetura, na nossa harmonia musical tão diversificada em cada região, dos nossos criadores das palavras. E ainda posso pôr nesse gostar, o Chile, cuja história me sensibiliza, cujo povo me habita. o Peru, com seus mistérios e fascínios pelo desconhecido alimentado pelos incas, quéchuas, aymaras. A Bolívia e toda a essência de uma América que se constrói por seu povo que mesmo sofrido tece suas cores de forç e determinação. Sou um latino-americano nascido no estado mais ao sul do país, e que procura cada vez mais o sul deste sul que me envolve. Assim, é a música que me aproxima de tantos movimentos nessa direção. Agora, por esses primeiros dias de inverno, o Marcelo está em Porto Alegre. Na bagagem, histórias e histórias. E muita música. Trouxe, via e-mail, o Dúo que faz com Walter Daniel Aravenis. E podemos entrar em um universo de cordas que vibram tangos, milongas, canções. Amigos e com pelo menos dez anos juntos um acompanhando o outro, vão criando a seu modo um repertório acústico com a beleza espontânea da vida. É para todos os que aqui chegam que ofereço os sensíveis violões de Marcelo e Aravenis em um espaço chamado Guitarra a La Carta, local onde se vende violões. Uma viagem pelo Prata.

https://www.youtube.com/watch?v=qBequz7GFsQ – aqui um apresentação em uma emissora de rádio. Para quem deseja conhecê-los um pouco mais.

Estrella Morente: Amar en Paz

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Uma proposta muito simples: repertório de músicas brasileiras na voz de Estrella Morente e com o violão de Niño Josele tecendo as teias harmônicas. Uma reunião de flamenco com música popular brasileira não soa tão original tampouco tão frágil como possa parecer a alguns críticos. O sonho de Fernando Trueba, o idealizador e tudo o mais da obra, se uniu a outros já realizados por ele, tanto com Estrella quanto com Josele na homenagem a Bill Evans. Foi quando a cantora gravou Francis Hime e enfim pisou o chão do Brasil. A Espanha tem muito a ver com nossas terras. Sua influência em nossa cultura é definitiva, e ao longo dos anos tem-se mostrado fértil. E não apenas por aqui, se não em toda América. É comum encontrar Diego El Cigala, por exemplo, na Argentina, gravando tangos. E o flamenco é um gênero que envolve quem com ele se relaciona. É impossível ficar em silêncio absoluto. Amar em Paz não é, no entanto, um disco de flamenco. É música brasileira vertida para o espanhol sob o comando do talento de Estrella. Um apanhado musical que vai cortando os anos e trajetórias, começando por Antônio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes, Radamés Gnattali, Pixinguinha/João de Barro, Francis Hime/Chico Buarque, Milton Nascimento/Fernando Brant, Dolores Duran, Paulinho da Viola, Álvaro Nunes/Otavio de Sousa. Um leque de décadas e gêneros que os acordes do violão de Niño suaviza. Culturas e leituras que se encontram. Sem medo de se assumirem. Quem sabe mais desses encontros que um lê o outro através das águas dos oceanos não possa trazer como o título do álbum – Amar em Paz – justamente a paz que tanto desejamos entre todas as gentes do mundo. Seja esse disco neste post uma declaração de tolerância, de compreensão, de humanismo, de paz diante dos acontecimentos de ontem.

Turfe: Das cocheiras do Stud Mário Rossano: Mário Rossano e Irineo Leguisamo

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Hoje, mais um mês no ano completado desde a partida do meu pai. E, mais uma pequena passagem de sua vida como jóquei aqui.

Irineo Leguisamo foi um dos maiores, para muitos o maior, jóquei da América do Sul. Nascido no Uruguai, foi muito cedo para as pistas de Palermo, em Buenos Aires. Antes, o filho de Salto, onde iniciou sua carreira, montou cavalos no “prado” de Uruguaiana, em fins da década de 1910. Logo depois, cumpriu ainda jovem o percurso dos “prados” do interior uruguaio para chegar à Argentina já nos anos vinte e em 22 conquistar sua primeira vitória no tradicional hipódromo. Amigo de Carlos Gardel, que fez tango em sua homenagem, venceu todos os maiores grandes prêmios do continente. Até encerrar sua atividade aos setenta anos. Um exemplo e um mestre. Em novembro de 1962 esteve em Porto Alegre. Veio montar Vizcaíno na maior prova na pista de areia do Brasil, o GP Bento Gonçalves no Hipódromo do Cristal no Rio Grande do Sul. Venceu. Nos dias que antecederam a corrida, Mário Rossano e Irineo Leguisamo tornaram-se amigos. A imprensa local registrou.

Legui e Rossano

“Rossano e Legui tornaram-se grandes amigos. O jóquei local diz que inclusive mandará um presente ao jóquei uruguaio, em sua opinião um “fenômeno”. Mário Rossano foi cumprimentado por Irineo Leguisamo após sua vitória com Mar Báltico. “Foi precisa sua direção”, comentou El Maestro, que fez grande amizade com profissionais locais. Rossano comentava ontem que o temperamento jovial de Lequisamo surpreendeu a todos, inclusive distribuindo alguns “talaços amistosos”, mas um pouco fortes, em todos que passavam à sua frente, disse Mário Rossano. O jóquei rio-grandinho prometeu inclusive enviar uma barbatana ao piloto oriental.” Última Hora, 13 de novembro de 1962.

A sequência da página do livro Dá-lhe Rossano traz pequena nota, com fotografia, do Turf no Sul, da vitória elogiada por Leguisamo. 1962….o tempo corre demasiado em relação às minhas lembranças. Nem o mais veloz dos puro-sangues pode alcançar esse ano dentro de mim. O pai falava muito desse encontro, o fez um homem feliz. Perto de sua partida, conversamos sobre a amizade entre eles e perguntei se havia mandado o presente. A resposta foi típica do “Viejo” Rossano”: “Mas, é claro.” Lembro de Mar Báltico, o esperei em uma de suas vitórias, mas não lembro de Leguisamo em Porto Alegre. Ou apenas é uma passagem que vai se apagando em minha cansada memória. 1962! Eu era apenas um narrador de corridas de bolinhas de gude debaixo da mesa em nossa casa.

O José Alberto Souza é um grande amigo. Um memorialista (http://poetadasaguasdoces.blogspot.com). Sempre vem com alguma surpresa. Desta vez, me enviou um e-mail com esse tango da Ucrânia anexado, perguntando: “O que diria o velho Mário?”. Posso te dizer, José Alberto, ele escutaria, diria que não é Gardel, mas celebraria com uma taça de tinto, abrindo o seu sorriso, como se estivesse cruzando mais uma vez a linha de chegada de uma corrida.

Matéria do livro Dá-lhe Rossano – 25 anos sobre as patas dos cavalos, editado por Mário Rozano.

Francisco Mário: Conversa de cordas, couros, palhetas e metais

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O irmão do Betinho e do Henfil já na vive mais conosco. Faz muito tempo. Como os irmãos, faz muita falta. Por tudo o que foram, na verdade são. Dono de uma obra musical ímpar, criativa e brasileiríssima, Francisco Mário soube os trânsitos que tinha que percorrer para fazer sua sonoridade cada vez mais para dentro do Brasil. O Betinho, no encarte deste Conversa de cordas, couros, palhetas e metais, escreveu: “Chico Mário criança dizia “eu gosto do caldo de música”. Para ele a letra era um problema, um obstáculo que ele não sabia saltar. Tomava o caldo. Agarrado no violão viveu sua vida de artista desde os sete anos. E foi tocando cada vez mais e melhor. E foi compondo e fazendo belos caldos. Eles estão, em parte, aqui no Conversa. No final, já no leito do hospital de onde não sairia mais, Chico escutou sua última obra. Era uma música clássica. Seus olhos de menino brilhavam com a beleza e com a grande aventura de produzir o clássico. Era como se tivesse começando, quando na verdade a morte estava ali esperando pelo último acorde. Mano Chico, estamos aqui para te ouvir por toda a vida. A tua eternidade. Não pare de tocar nem de compor, siga as ondas, as cordas onde for.” Partiu aos 39 anos de idade. Seus discos: Suíte Brasil, Vida e Obra, Dança do Mar, Retratos, Pijama de Seda, Terra, Revolta dos Palhaços. Há vários textos sobre sua vida e obra, como este assinado por Nívia Souza: http://www.3irmaosdesangue.com.br/irmaos/chico.html

Oportunidade de conhecer ainda mais o Chico Mário. Suas canções, sim, eternas e que pulam os obstáculos da letra e falam com a linguagem da vida.

Gisbranco: Flor de Abril

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Bianca Gismonti e Claudia Castelo Branco. Bianca é filha de Egberto Gismonti e isso por si só deveria ser uma apresentação. Para ela não é. mesmo com todo o amor e influência paterna ela juntou-se a Claudia e seguiu caminho. Dois pianos. Muitas ideias. Música. O Duo assume sem medo um repertório infinito: Heitor Villa-Lobos, Baden Powell/Vinícius de Moraes, Edu Lobo/Capinam, Hermeto Pascoal e Chico César. Flor de Abril não se resume a leitura especial desses compositores, possui obras próprias, e personalidade mais que própria. Talvez muito mais conhecidas no exterior que no Brasil, Bianca e Claudia têm muitos amigos que participam de suas obras: Carlos Malta, Robertinho Silva, Chico César, já tocaram com Ná Ozzetti, Marcos Suzano e músicos cubanos. Os teclados da dupla são incansáveis na busca – e no encontro – de texturas originais que marcam cada nota. As vocais que acompanham cada faixa do disco segue o mesmo caminho. A linguagem e estética ficam sempre em primeiro plano e classificar qual o gênero é algo indefinido para quem apenas coloca a criatividade à frente de qualquer rótulo (jazz à brasileira?). Ambas fazem música do mundo, e a sua música. O grande valor do trabalho é esse: identidade e autenticidade.

Hoje, 24 de junho está fechando 80 anos da passagem de Carlos Gardel entre nós. Desaparecido em acidente aéreo na cidade de Medellín, na Colômbia, Gardel permanece mais intenso e mais vivo com sua arte e seu jeito único de cantar tango. Neste espaço, sempre há Gardel. E sempre haverá tango. É e-terno.

Mercedes Sosa, León Gieco, Eugénia Melo e Castro, Dulce Pontes, Joan Baez, Tom Jobim….

Hoje, apenas música. A que nos envolve. A que nos revela. A que nos transforma. A que nos lança através dos tempos. A que nos faz parar. A que nos faz pensar e discernir. A que nos comove. São tantas. Escolho as que nos aproximam latino-americanos e portugueses, como um caminho sem volta de integração e alma. Identidades que se reconhecem e andam pelas mãos da arte. Margens que se encontram.

Los clásicos Afro-Peruanos: El alma del Peru Negro

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A história da conquista da América Latina é comum a todos os países. isso já é por demais conhecido tanto quanto junto aos conquistadores vieram também traços de culturas desde sua origem hispânica, notadamente. mais adiante, ou quase ao mesmo tempo, o processo de escravidão para alimentar as então elites da conquista foi diferente em alguns países. Se havia uma certa “unidade” no processo escravagista era por interesse, ou seja, quanto mais reunidos clãs de escravos, preservando suas famílias, ritos, crenças e cultura, melhor trabalhavam ou para ser exato, mais explorados eram. No Peru, aconteceu o oposto. Não chegaram famílias, grupos étnicos, nada semelhante aos demais do continente. Não havia unidade entre eles, não havia um líder que pudesse manter suas tradições, sua identidade comum. Assim, o processo mais natural então foi agregar os escravos à cultura local, em especial a do litoral peruano. Esses pequenos grupos novas células culturais a partir do local onde começaram a viver. Nasceu uma mescla original e única entre as tradições espanholas, andinas e africanas. Algo como língua, a estética e a forma de fazer poesia e como instrumento a guitarra (violão); dos Andes, o espírito, a melancolia, algumas formas musicais e por fim da África, o incrível ritmo, conservado geração a geração através dos tempos. Uma expressão cultural emergia em meio a tragédia escravagista. É claro que esse desenvolvimento vai se forjando ao longo do tempo, assumindo outras proporções, outras expressões, são incorporados novos ritmos, novos gêneros. Dando um salto na história, mais modernos, como o jazz, o reggae, o rock, a canção melódica. Dessa soma, a música afro-peruana é uma expressão única, natural e básica em todos os sentidos. Aqui, neste pequeno texto, reside apenas uma síntese menos alentada da música peruana, em especial a afro. Sem deixar de admirar a sua profunda e rica criação, com composições, instrumentistas e intérpretes que comovem e atravessam a história com digna integridade. Esse disco original foi compilado por David Byrne, um admirador da nossa América.

Luís Eduardo Aute & Silvio Rodriguez: Mano a Mano

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Um encontro entre o espanhol Luís  Eduardo Aute e o cubano Silvio Rodriguez realizado na Plaza de Toros – Las Ventas em Madrid em 24 de setembro de 1993 e ao escutar tem-se a sensação de ser um show que assistimos ontem. Não é necessário comentar sobre ambos. O que significam e o que são. Escutar o disco na íntegra, está logo ali acima, diz tudo. E a nós, uma celebração à vida que chega em forma de canções e um público que envolve a ambos. Inesquecível.