Hoje, mais dia em que o calendário marca 26, completando dois anos e quatro meses da partida do meu pai. Os adjetivos para a saudade parecem esgotados em meu pequeno vocabulário e os recursos para encontrá-los se tornam mais distantes. A lembrança, jamais. Então, o Marcelo Fébula, argentino de Buenos Aires, que conheci nas lides do Hipódromo do Cristal, graças ao meu irmão Mário, e veio a se tornar um grande amigo por afinidades várias, entre elas o turfe, a música, o jornalismo, a literatura. Marcelo teve curta convivência com o “viejo” Rossano. E nasceu uma profunda admiração mútua, que Marcelo cultiva até hoje. E isso me traz o universo multifacetado do turfe, tantas e muitas vezes visto como um local apenas de jogo de azar. Não é. Há muita vida dentro deste mundo que escrever agora não há como. Hoje, dia em que a saudade se instala com maior intensidade, deixo um texto sobre Floreal Ruiz e o tango, que o pai amava, escrito pelo incansável e talentoso Marcelo como uma homenagem ao Mário Rossano que ele conheceu. Gracias, amigo.
Escutar ao “Tata” Floreal Ruiz é como estar na mesa de um bar conversando tranquilamente com um amigo. Um amigo que conta historias cantando, enquanto fuma um cigarro e toma café olhando passar a vida pela janela. Sua absoluta naturalidade para cantar, sem nenhum esforço, com perfeita afinação e profundo conhecimento da letra interpretada, foi talvez o melhor exemplo daquele conselho que o Gordo Troilo dava aos cantores: “Ao público há que contar-lhe, não cantar-lhe.”
Nasceu em Buenos Aires, no bairro de Flores, em 29 de março de 1916. Filho de José Ruiz e Rosa Raimundo. O nome dele e de seus dois irmãos, Fraternidad e Libertario, falavam da ideologia anarquista do pai, muito difundida na classe obreira em princípios do século XX em Argentina. Seu primeiro apelido foi “Piruco”, e desde pequeno misturou os estudos primários com as brincadeiras infantis pelas ruas do bairro e a paixão pelo futebol (era fá do clube Independiente). Herdou o oficio de estofador de seu pai, e também trabalhou como entregador de pão e leite tentando ajudar a fraca economia familiar. As vozes de Carlos Gardel, Agustín Magaldi e Ignacio Corsini que saiam de fonógrafos e rádios alimentaram seus sonhos de cantor, e era um dos escolhidos pelos amigos para dar serenatas às meninas do bairro. Mas o pai não gostava daquela vocação do filho, por isso Floreal, que enquanto trabalhava não perdia nenhuma oportunidade de se apresentar nos concursos de cantores, utilizava pseudônimos como Fabián Conde ou Carlos Martel. Em 1936 ganha um concurso em Radio Fénix e pouco depois ingressa na orquestra de José Otero, com quem atua em Radio Belgrano e Radio Pietro. Desses tempos (1938) são uma gravação onde canta a marcha do clube Platense e breves atuações na Orquestra Armenonville de Alberto Mancione.
Alfredo De Angelis, nome importante na história do tango (sempre encontrei o som de sua orquestra muito desagradável), incorpora ao Floreal em 1942. Assim, com só 26 anos de idade ingressa pela porta grande do tango como cantor de uma das orquestras mais exitosas, trabalhando em cobiçados redutos do género como o Café Marzotto, importantes rádios como El Mundo, e chegando as gravações com grande sucesso.
Quando o Francisco Fiorentino, cantor emblemático da orquestra de Troilo, deixa a agrupação, o outro cantor, Alberto Marino, faz gestões para a contratação de Floreal, seu amigo. Nasce então, em 1943, um dos binômios mais impressionantes da historia do tango: a voz de Floreal Ruiz acompanhada pela grande orquestra de Aníbal Troilo. Binômio que no ano seguinte começa a deixar em discos do selo RCA Víctor algumas versões imortais como: “Marioneta”, “Confesión”, “Flor de Lino” ou “Romance de Barrio.” A orquestra, onde Floreal também integrou grandes duetos vocais com seus colegas Alberto “Tano” Marino e Edmundo “O Feio” Rivero, era solicitada pelos mais importantes locais do tango, as rádios de maior difusão e os clubes organizadores dos maiores carnavais da cidade.
Aquela etapa chegou até 1949, ano no qual o diretor Francisco Rotundo lhe faz uma oferta suculenta e o contrata. Nessa nova agrupação Floreal tem como colegas a Enrique Campos e Carlos Roldán, e deixa junto ao primeiro uma antológica gravação do tema “El viejo vals.”
Dissolvida a orquestra de Rotundo por falta de trabalho (o diretor estava publicamente identificado com o partido político destituído no golpe de estado de 1955), em 1956 Floreal é contratado pelo diretor José Basso, ex-pianista da orquestra de Troilo. Compartilhando cena com colegas como Oscar Ferrari, Alfredo Belusi, Jorge Durán, Alfredo del Rio e Roberto Florio, nesse período o Tata deixa quarenta temas gravados nos selos Odeon e Music Hall.
No começo do declínio da época de ouro do tango, quando as orquestras mudaram para conjuntos instrumentais mais pequenos, alguns cantores exitosos tornaram-se solistas para não perder protagonismo. O caso mais claro foi o do uruguaio Julio Sosa tendo ao Leopoldo Federico como diretor da orquestra que lhe-acompanhava e marcando esse novo caminho. Floreal, por sua parte, escolheu para a nova etapa solista ao mestre compositor e arranjador Osvaldo Requena, com cuja orquestra fez gravações para o selo Microfón e frequentes apresentações nos sinais 9 e 11 de televisão.
O apelido mais perdurável do cantor (também chamavam-lhe “O Galego”) nasceu naquela época em que começaram a chegar a Argentina ofertas desde Colombia, Venezuela, Mexico e outros lugares de Sul-América para figuras do tango, género muito apreciado nesses países. Em uma turnê feita por um grupo de intérpretes, Floreal, conhecedor do pouco que dura o salario no bolso dos jovens, propôs fazer a coleção do dinheiro de todos e distribuir-lhe quando ficassem de volta em Buenos Aires. A proposta foi aceita, já que ele era o homem mais sério e mais respeitado do grupo. Todos sabiam que os bilhetes estavam bem seguros nas mãos do Velho, que não permitiria que voltassem sem dinheiro para suas famílias. Assim foi que uma noite o cantor Mario Bustos disse na porta do hotel a duas mulheres que o acompanhavam: “Um momento, vou pedir a Tata Deus alguns pesos.” (no campo argentino, carinhosa e respeitosamente a palavra tata e sinónimo de pai). Aquela ocorrência de Bustos foi muito comemorada e Floreal, homem de boa índole, com experiência e idade para ser considerado um pouco o pai de todos, aceitou de bom grado seu novo apelido.
Realizou suas últimas gravações com a Orquestra Típica Porteña, dirigida pelo bandoneonista Raúl Garello. Sempre lembro uma reflexão de meu amigo Tito Badín respeito daquele último trabalho discográfico: “Quando ele terminou de gravar a última música, disse: “Pronto! Fechem o caixão!” É que o Tata nesse tempo tinha só um fio de voz. Mas o trabalho é notável porque mesmo assim permanecem inalteráveis seu grande poder expressivo e sua afinação. Em 1975 sua saúde tinha-lhe dado um primeiro aviso. Era um homem de sessenta anos com quarenta de carreira artística desenvolvida na noite que fumava quatro maços de cigarros por dia, excesso que também tinha na hora de comer e beber. Mas apesar das indicações dos médicos, família e amigos, que lhe convidavam a abandonar o trabalho, continuou cantando, fumando e fazendo honra a sua paixão pela boa comida. Pouco depois de seu 62 aniversário as complicações de saúde tornaram-se sem volta. Assim, ainda jovem, subiu para o céu dos cantores.
Ao longo de sua carreira artística o Tata fez um total de 148 gravações com as orquestras de José Otero, Alfredo De Angelis, Aníbal Troilo, Francisco Rotundo, José Basso, Osvaldo Requena, Raúl Garello e Jorge Dragone. Gravou nos selos Odeón, RCA Víctor, Pampa, Music Hall, Microfón y Alanicky.
Aqui lhes deixo quatro joias em jeito de introdução à arte de Floreal Ruiz. Nestes casos, acompanhado pela orquestra do Gordo Aníbal Troilo.
Marcelo Fébula