Gregory Alan Isakov: That sea, the gambler

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A certidão de nascimento indica Johannesburg, África do Sul. cedo, a família migou para os Estados Unidos e por lá a vida cresceu para ele. A música, com o passar dos anos, também chegou. Influências de Leonard Cohen e Bruce Springsteen indicaram alguns caminhos. E o folk, lado índie, ingressou na busca do sentido em cada canção. São histórias das suas paisagens vividas, das que o instigam a busca pelo sentido e seus discos revelam essas faces como em That sea, the glambler, recheado dessas inquietações e certezas levadas ao violão e bandolim. São, em certa medida, também as nossas inquietações e certezas e nossas buscas.

Zéli Silva: Una

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O disco é um convite duplo: para instrumentistas e pessoas como você. Como eu. Há em cada faixa uma confluência de sonoridades, ritmos, estilos, gerações, instrumentos que se aliam às tramas da música e tecem os mais variados sons que cada um é capaz de oferecer. E ganhamos todos. Zéli Silva fez de Una um trabalho de tecelão. Um quinteto recheado de amigos como João Donato, Léa Freire, Arismar do Espírito Santo, Chico Pinheiro, a voz de Tatiana Parra e mais outros tantos do mesmo calibre estão ao lado e com Zéli, Edu Ribeiro, Fernando Correa, Moisés Alves e Vitor Alcântara. O jazz predomina, mas se você se deixar levar, vai descobrir um universo de melodias que o abraçam e fazem estar presente no disco.

 

Banks: The Altar

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O eletrônico encontra o rock/pop naquele guarda´chuva imenso que é a música índie. Banks chega com The Altar, trazendo boas doses de drama, de vibração, de interiorização, de mordacidade e, por vezes, mais aguda no seu cantar. A capa, no entanto, revela o por dentro do disco: Banks como realmente é, sem as modificações que recursos técnicos na fotografia ou de maquiagem nela mesmo, com o olhar direto como um espírito que pode estar sofrendo, com toda a sua vulnerável corrente sanguínea da vida. É um álbum honesto e denso, que lança ao universo aquelas partículas que nos alimentam para seguir adiante: a sensibilidade e a consciência.

 

Soundtrack: Easy Rider

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Easy Rider, no Brasil Sem Destino, é um filme emblemático. Realizado em fins dos anos 60 por Peter Fonda, Dennis Hooper – seu diretor – e Terry Southern, conta a busca pela liberdade pessoal de seus personagens principais, que atravessam parte dos Estados Unidos em duas motocicletas. Mais que apenas centrar na figura de Fonda e Hooper e até mesmo Jack Nicholson, a história acende as luzes daquele período, em especial a contracultura, e lança questões mais que subliminares sobre as paisagens de um país seja no aspecto social seja no político e suas tensões como também frequenta o movimento hippie já em processo de decadência, as drogas e a vida em comunidade. Mais que um filme de uma época, ao traze-lo para os dias de hoje é assustadora a presença de pontos comuns com a realidade do mundo em que vivemos ou tentamos viver. Marca ainda profunda, Easy Rider não é apenas a realização de um sonho. Debruçar-se sobre seu interior é quem sabe abrir outras portas da percepção do agora. Também tem como alicerce uma trilha sonora extraordinária onde se revezam entre as faixas do disco The Byrds, Steppenwolf, Jimi Hendrix, Roger McGuinn e The Band entre outros. Um momento a ser visitado com profunda atenção.

 

Nick Cave & Bad Seeds: Skeleton Tree

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O que há de sombrio há de sensibilidade em Nick Cave. profundo em sua condição de ser humano, viveu com intensa dor a perda enquanto trabalho Skeleton Tree. E o resultado é sempre próximo do minimalismo a começar pela capa do disco, pelos arranjos bem menos dramáticos, melodias que descansam discretas sobre camas eletrônicas e as letras traduzem esse sentimento todo com o acompanhamento da Bad Seeds. E, ao contrário de desejar se afastar desse luto, ele faz homenagem a quem partiu, dando sentido à própria dor e encontra a paz. Álbum muito sensível.

 

Árvore Genealógica, por Marcelo Fébula

Hoje, mais um 26 no calendário. Esse dia, passou a ser uma marca de dor e saudade. Dia em que meu pai partiu em abril de 2014 e dia em setembro passado meu irmão nos deixou. Antes, todos os meses abria este espaço com textos sobre a memória do pai. Com o tempo, o amigo de Buenos Aires, Marcelo Fébula, jornalista, músico e turfista, passou a desembarcar no cais de Porto Alegre. E em nossa amizade, nascida através do meu irmão, jamais deixou de estar presente em nossos momentos mais agudos com sua sensibilidade. Agora, chega com mais um texto que traz a vida porteña e o que nos une através do tempo, que deixa seguir seu destino. A música ao fim do texto é escolha minha, distante da música argentina, um Bob Dylan, que o Mário também admirava, interpretando Beatles.

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Árvore Genealógica

Este texto foi publicado em Setembro de 2006 e depois reeditado em 2010 nas páginas da revista TAG – Todo a Ganador, e em 2014 no blog Los Pingos de Todos. Hoje, com algumas correções, o compartilho com os amigos leitores de Chronosfer. Penso que meu querido amigo Mário Rozano houvesse gostado de ler estas lembranças.

Em memória de Osvaldo Soriano [i],

com quem pude compartilhar várias destas memórias

em uma carta corva [ii] e emocionada

quando tudo era Triste, Solitário e Final [iii].

Até o momento de começar a tramitar meu visto para ingressar no País de la Andante Burrería [iv], eu era um cara identificado com o futebol de maneira quase exclusiva. Acho que tão cedo como autorizou que eu comesse acompanhando os pratos com um copo de vinho tinto e soda, meu pai segurou minha mão para subir pela primeira vez os degraus do velho Gasómetro [v]. Entre essas memórias que acariciam a alma me vejo menino, um meio dia de domingo na cozinha do fundo do conventillo [vi] frente à travessa fumegante de macarrão com molho, enquanto na rádio Fandango no programa Calle Corrientes [vii] conta como lhes ensina a dançar o tango a reis e princesas europeus. Quando nossa partida para o estádio seja iminente e minha mãe esteja preparando nossas roupas em função do prognóstico meteorológico, ensaiaremos a repetida piada, que não por repetida deixa de fazer-nos rir. Eu, sabendo a resposta, lhe perguntarei ao Rogelio: –Como vamos ir até o estádio? E ele me responderá: –Um pouquinho a pé, e um pouquinho caminhando. E lá vamos. Rua Corrales, Avenida Centenera, Avenida Cruz, Avenida La Plata. No caminho faremos pequenas escaramuças de luta, corridas até as esquinas ou guerrilhas com o que nos oferecem as estradas: desde frutos das árvores até excrementos de cães secos. Vamos ficando mais perto, cresce o rumor da multidão, e já estamos falando do jogo. Longas filas se movimentam pelos paralelepípedos da avenida enquanto tentamos olhar a ocupação da tribuna popular. Já ingressados, ficaremos um tempo no alambrado, junto à plateia de sócios vitalícios, olhando o jogo da terceira divisão. Os tambores e as bandeiras vão marcando a voz da torcida, que com seus saltos movimenta lá no alto o emaranhado de fios e os carteis de Vinos Carrodilla, Fernet Branca e Lapiceras Sylvapen. Pelos alto-falantes se ouve o jingle de Proveeduría Deportiva e enquanto vamos subindo pelas velhas tabuas a Voz do Estádio anuncia as formações titulares dos times. Depois, a festa daquelas tardes inesquecíveis que o velho Ciclón [viii] de Boedo ofereceu a seus fãs nos finais dos ‘60 e princípios dos ‘70. Ai fica por sempre minha imagem de menino impressionado, junto a esse carpinteiro magro de mãos calosas que ficou Corvo apenas chegou desde seu povo de Nueve de Julio, no campo, quando morreu seu pai e ele tinha cinco anos. Minha história relacionada ao futebol deve ser como a de milhões de fãs no mundo. O calor das memórias de infância, ai onde se adquire uma identidade, uma adolescência talvez na fronteira com o fanatismo, e uma fase posterior mais calma e refletiva embora sem abandonar nunca aquela paixão adquirida criança. Rogelio foi um grande jogador de futebol. Ainda hoje encontro pessoas do bairro que me perguntam se sou o filho do Gato, e lembram: –Uh! Como jogava futebol teu velho! Era defensor central, com o número 2 sobre as costas de sua camiseta. Rapidíssimo (talvez dessa característica nascesse seu apelido), com boa técnica e um canhão em seu pé direito. Em épocas onde existiam longas fileiras até para ingressar num clube de bairro e às vezes isto só era possível tendo um contato influente, até a casa de Rogelio chegaram duas vezes dirigentes de San Lorenzo com a intenção de convencê-lo para treinar nas divisões inferiores do clube. Mesmo com a aprovação de sua mãe, não quis aderir à disciplina profissional nem sequer no clube que amava, e preferiu continuar sendo o atorrante [ix] de sempre, jogando até quatro partidas na mesma semana, em equipes do bairro ou com seus companheiros da fábrica, em campos profissionais ou em lotes de terra entre cardos, pedras e vidros quebrados, com botas de futebol o sem calçado. Além de nossos jogos de pai e filho quando eu era menino, pude vê-lo em ação em jogos de veteranos onde olhei que não exageravam em nada aqueles que o recordavam jogando com vinte anos.

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Entre a neblina das memórias ainda vejo como chega com tempo a todos os cruzamentos, como chuta uma bola desde fora da área e derruba dois tijolos da parede de trás de um arco sem rede enquanto um espectador grita: –Gritem babacas! Gritem que foi gol! Continuo escutando a um atacante com varias temporadas na primeira divisão falar-lhe na finalização de um primeiro tempo: –Deixa-me tocar uma bola, magro de merda! O continuo vendo, já um pouco doente de um joelho e com mais de cinquenta anos, aceitar a proposta de partidas informais no pequeno campo do clube do bairro para terminar jogando partidas que nada tinham de amistosas enfrentando jogadores muito mais jovens. Nesses tampos seu físico não era o mesmo, mas a qualidade continuava intata, como para desbaratar a um embalado e grandão número nove sem falta, como para receber uma bola que vinha desde um canto e, ingressando pela borda da área, colocá-la na base do poste mais distante do goleiro, lá onde cagam as aranhas. De Roge herdei em forma direita a paixão pela camiseta azul e vermelha e o futebol, mas não assim a qualidade para jogar. Nos esportes, ingressando na adolescência compartilhava minha militância de fã com o boxe e o automobilismo. Noites de boxe profissional no estádio Luna Park ou na Federação, ou de boxe amador no clube Unidos de Pompeya. Manhas de domingo escutando desde cedo na rádio os Grandes Prémios de Turismo Carretera [x], quando nas transmissões depois do clássico e vibrante –Adiante o avião! se relatava desde as alturas o passo do Sete de Ouro de Roberto Mouras e outros famosos carros pelos caminhos do campo. Mas o interesse máximo o tinha o futebol, e assim foi durante muitos anos. Roberto Fontanarrosa [xi], voz com entidade para opinar de futebol, disse que a frase todo tempo passado foi melhor já foi encontrada escrita com estranhos caracteres nas paredes das pirâmides egípcias. Concordo com ele na hora de desconfiar dessas palavras, mas a verdade é que um dia, cansados do perfil mafioso dos dirigentes, do negocio desvergonhado e a violência chegando a limites desconhecidos, sem deixar de ser um par de Corvos indissimuláveis nem abandonar nosso gosto por um esporte de beleza estética sem discussão, sentindo uma mistura de raiva, tristeza e saudade, com meu pai fomos espaçando nossa assistência aos estádios, tornando-nos fãs de TV e rádio. Ao mesmo tempo, cada um por seu lado ou formando parte de um grupo de amigos, visitávamos cada vez com mais frequência as arquibancadas dos hipódromos, onde novas paixões nos esperavam. As diferenças entre o ambiente de um estádio de futebol e o hipódromo, dois âmbitos populares profundamente arraigados em estas terras sul-americanas, poderiam se sintetizar em uma anedota que chamou muito minha atenção em meus primeiros tempos de burrero. Dois caras estavam envolvidos em uma dura discussão. Pouco a pouco foram subindo o volume até quase chegar aos gritos. Nesse momento um veterano que ficava a pouca distância, deixando de ler seu periódico olhou para eles e disse: –Eh, vocês! Ide para o estádio! Em nossos cenários de futebol a separação entre protagonistas e espetadores é um ameaçador arame farpado. Quando não foram suficientes os fizeram mais altos, e até de outros materiais como o acrílico, porque no somente na tribuna popular existem energúmenos dispostos a cuspir ou jogar pedras. Alguns estádios também possuem um profundo poço perimetral que limitam campo de jogo e arquibancadas, aptos para amanhã jogar uma dúzia de jacarés. O hipódromo, em datas especiais também recebe multidões. Um dia de Grande Prémio Carlos Pellegrini, por exemplo, cinquenta mil pessoas podem ficar em San Isidro. E a grande diferencia em relação com o futebol e outros esportes é que esses cinquenta mil caras não são somente espetadores: estão ai arriscando seu dinheiro em apostas, detalhe nada menor. Então, que os separa dos protagonistas? Uma cerca de um metro de altura. Enquanto se continua mexendo a panela com cheiro podre onde fervem ao mesmo tempo dirigentes, violentos e policiais, enquanto continua crescendo de forma insólita e vergonhosa a quantidade de mortos e feridos assistindo a um espetáculo esportivo, nas proximidades e dentro dos estádios ficam cercas, patrulhas, veículos de assalto e corpos de elite armados para a guerra. Voltando ao turfe, quantos policiais são enviados ao operativo de seguridade um dia de Grande Prémio? Dois. Três se algum cana [xii] ficou cansado de fazer chimarrão na delegacia. Ácido, algo impopular, mas gênio inegável e observador atento, Borges confessou alguma vez ter a impressão de que as pessoas iam aos estádios para ver ganhar a seu time, não para ver futebol. E não estava tão errado, não? Há muito tempo se estabeleceu no futebol e na sociedade toda o conceito miserável pelo qual só servem aqueles que ganham e quase não existe espaço nenhum para desfrutar de um bom jogo, independentemente das camisetas. Este modo de entender as coisas chegou para ficar, e partindo daí tudo se torna vulgar, desde a mesquinharia dos espetáculos até a violência desencadeada pelo simples fato de perder, passando pelos lamentáveis jornalistas que o sistema vai dando a luz como uma fábrica de salsichas. Neste ponto o burrero também marca diferenças: é capaz de perder seus últimos dinheiros num bravo final de meio pescoço dizendo “Está bem, se ganhou esse, está bem”. Ou ficar em pé aplaudindo ao ganhador de uma prova clássica que aponta para conquistar a tríplice coroa enquanto seu elegido chega pelejando o último posto com a ambulância. Pouco a pouco fui descobrindo e sublinhando estas diferenças. O hipódromo não era o paraíso, ai perto ficava a porta entreaberta para cair pelo abismo do jogo, e as eternas suspeitas de armadilhas como um ingrediente natural das corridas. Mas já ficava dentro daquelas apaixonantes danças do bilhete ao vencedor, e sem nenhum animo de sair. Pelo contrário, com muitas ganhas aprofundar conhecimento. Já burrero consumado, um dia comecei a me perguntar de onde viria meu grande gosto pelas corridas e os cavalos. Em relação com o futebol à influencia de meu pai era muito clara. Mas, e os yobacas [xiii]? Por que quando pisei o pela primeira vez o hipódromo teve a sensação de conhecer o ambiente e me senti um novato apenas uns minutos? Não há dúvidas. Se existe algo de fábrica, se algo vem pelo sangue, herdei o perfil burrero de meu avô materno, Cayetano, a quem não conheci. Tampouco conheci a meus avós paternos, embora suponho que os temas referidos a os cavalos não lhes seriam alheios, já que eram pessoas que nas primeiras décadas do século passado nasceram e moraram em povos do campo: Nueve de Julio e Carlos Casares [xiv]. Mas no caso de Cayetano (Gaitano para os amigos) a coisa é distinta. Nascido em Buenos Aires, contam que sempre foi homem de cavalos, principalmente por razões de trabalho. Precisava deles para puxar dos carrinhos com que trabalhava para o município, fazia a ciruja [xv] ou vendia produtos hortícolas. Seus animais pelo geral eram mansos y de força, mas também teve outros para andar e não demasiado aptos para essas atividades, como a loira Tita, que segundo conta minha mãe era muito geniosa e em seus piores dias forçava as pessoas a se esconder ou colocar o corpo no chão até que Gaitano conseguisse dominá-la. Era muito amigo de Jorge Laferrere, o boêmio da família aristocrática em cujos campos trabalhou, e sempre o encontrava no bar e restaurante El Hornero da localidade de Gonzalez Catán, sentado em sua mesa da janela. Também se conta que no meio da revolução do ano ‘55, quando se olhavam aviões de guerra cruzando o céu, se escutavam bombardeios pelo lado do centro da cidade e a gente do bairro tentava ficar dentro da proteção de sua casa, Gaitano selou um de seus cavalos e saiu ao galope a procurar os meninos (seus filhos e quem seria seu genro), que estavam trabalhando na carpintaria. A principal anedota que me marca esse assunto da herança burrera é uma que escutei relatar desde menino a minha mãe Rosa e minha a avó Beatriz. No bairro havia um cavalo ligeiro, escuro e grandão na cocheira de um vizinho, O Negro Are. Este homem, sua família e qualificados vizinhos como O Pampa Barraza acostumavam acompanhar ao cavalo as cuadreras [xvi], uma verdadeira torcida hípica vinda de Villa Soldati e Nueva Pompeya [xvii] para apoiar e colocar seus dinheiros nas patas do ídolo dos bairros. Em uma dessas jornadas, num campo pelo lado do povo de Cañuelas, recém-chegados a pista Gaitano já andava por ai ofertando doy doble contra sencillo [xviii] quando desde o caminhão baixaram ao ligeiro, que caminhou uns passos e ficou quieto olhando fixamente o horizonte. Nesse momento o Gaitano disse uma frase que perdura até nossos dias, pelo menos na memoria de nossa magra família: –Cavalo que olha para o campo, não perde. Horas depois ganhou o grandão e houve churrasco, vinho e celebrações até altas horas da noite, com vários fãs felizes e espalhados baixo as árvores. Felizes e bêbados. Existem mais anedotas de meu avô, os cavalos e as corridas no campo, mas se alguém se mostrara cético dizendo que em definitiva são coisas que eu não vivi pessoalmente, posso contar algo que vivi e talvez certifique melhor essa teoria da herança burrera. Um dos filhos de Cayetano, meu tio Carlos (também conhecido pelo apelido de Potranca), nasceu muito, muito burrero. Por essas coisas que tem as famílias, o vejo mais ou menos uma vez cada cinco anos, é dizer que até à tarde que vou referir, ele conhecia pouco e nada dos costumes de seu sobrinho. Era uma tarde de Grande Prémio Carlos Pellegrini, não tinha dinheiro nem para viajar até o hipódromo e decidi olhar as corridas na agencia hípica do bairro. Apostei meus únicos bilhetes e tive a sorte de acertar a aposta exata da corrida internacional da reta que ganhou o cavalo Turco Zaino. Momentos depois, enquanto tomava uma cerveja no bar da agencia, vi a meu tio. Se houvesse lhe contado que havia comprado uma casa, que depois de muito estudo me tornei médico ou que no dia anterior tinha sido pai, acho que ele não se houvesse emocionado tanto como descobrindo que tinha um sobrinho burrero. Creio que até vi alguma lágrima em seus olhos. Batia palmadinhas em minhas costas, ria, me apresentou alguns de seus amigos e aceitou que lhe invitara um copo de cerveja enquanto olhávamos aquele Pellegrini ganhado pelo grande Chullo. E aqui estou. Durante muitos anos me neguei a passar pela esquina de Avenida La Plata e Las Casas. Ainda fico estremecido lembrando o tremendo silêncio do estádio desmantelado ao anoitecer. Só consegui voltar à tarde em que uma caravana partiu dai rumo à inauguração da casa nova. Como me houvesse gostado comemorar junto a Roge os títulos de Campeão que chegaram depois de tantos anos… E aqui estou. Às vezes, caminhando pelo sector de exibição do hipódromo, quando algum cavalo de repente interrompe seu passeio e fica parado olhando algo lá longe, lembro aquela frase de meu avô, o baixinho Cayetano:  –Cavalo que olha para o campo, não perde.

Marcelo Fébula

[i] Ovaldo Soriano (Mar del Plata, 6/1/43 – Buenos Aires, 29/1/97) foi um jornalista e escritor argentino, reconhecido pelo público e pela crítica internacional. Fumante inveterado, coruja de noite, militante de partidos de esquerda e grande fã de San Lorenzo. [ii] Corvo é o apelido dos fãs de San Lorenzo. Aquela carta corva foi uma comunicação entre dois fãs do time. [iii] Triste, Solitário e Final (1973) foi o primeiro romance de Osvaldo Soriano. Para muitos entendidos, sua obra maior. [iv] El País de la Andante Burrería es una feliz expressão do escritor Jorge Larroca em seu livro “Entre Cortes y Apiladas”. No idioma Lunfardo, a gíria característica do habitante de Buenos Aires, burrero é o aficionado ao turfe. O referido País é aquele que habitam os burreros.[v] O Gasómetro foi o apelido do velho estádio de madeira do clube San Lorenzo. Ficava em Avenida La Plata entre as ruas Inclán e Las Casas. Foi inaugurado em 1916 e desmantelado em 1979. Em 1993 o clube inaugurou seu novo estádio, qué é chamado O Novo Gasómetro[vi] Conventillo é uma casa grande e antiga, com banheiros e lavandarias em comum e muitos quartos onde moram pessoas humildes, pelo geral construída em chapa de metal e madeira. Tiveram seu maior auge em Buenos Aires nos começos do século vinte, os anos onde o país recebeu grandes quantidades de imigrantes. Hoje estão quase erradicados. Entre os poucos que sobrevivem, alguns foram remodelados e funcionam como museus ou lojas comerciais, especialmente no bairro de La Boca. [vii] Calle Corrientes (rua Corrientes) foi um exitoso programa humorístico de rádio. Um de seus muitos personagens era o referido Fandango, personificado pelo ator Oscar Casco. Nesse programa nasceu o apelido da famosa Avenida Corrientes de Buenos Aires: “A rua que nunca dorme”. [viii] O Ciclón é um dos apelidos do time San Lorenzo. Boedo é o bairro de Buenos Aires onde nasceu (quando o clube foi fundado Boedo ainda não existia, essa zona da cidade pertencia ao bairro de Almagro, por isso o nome completo do clube é Club Atlético San Lorenzo de Almagro).[ix] Atorrante é uma palavra da gíria Lunfardo, define a uma pessoa preguiçosa e pouco trabalhadora. [x] Criada em 1939, o Turismo Carretera é a mais importante e popular categoria o automobilismo argentino. Ao longo da sua história muitos de seus carros foram identificados pelos apelidos: A Vermelhinha, O Trator, A Lebre, O Quadrado, O Trovão Laranja, O Televisor, A Negrinha, O Baixinho, O Sete de Ouros, O Míssil, O Canhão, A Laranja Mecânica, etc. [xi] Roberto Alfredo Negro Fontanarrosa (Rosario, 26/11/44 – ibid. 19/7/07) foi um notável humorista gráfico e escritor argentino. Publicou coleções de piadas soltas, historias em desenhos, romances, livros de contos, e também incursionou no cinema como intérprete (brevemente), escritor e autor. Muitas de suas obras foram adaptadas para o teatro. Pai do personagem Inodoro Pereyra e seu cachorro Mendieta, embora não se preocupava pela opinião do establishment literário, está considerado um dos melhores contistas argentinos. [xii] No idioma Lunfardo a palavra cana tem o doble significado de policial e prisão. Assim, estar en cana ou encanado é estar preso. O policial nesta gíria também é chamado tira, rati, yuta, cobani, gorra, botón, etc. [xiii] Dentro do Lunfardo existe uma espécie de sub-gíria chamada vesre ou verre. É simplesmente falar ao revés, trocando a ordem das sílabas das palavras. Assim, yobaca não é outra coisa que caballo (cavalo). Neste caso tendo em conta que no falar habitual do habitante de Buenos Aires se troca a letra ll e seu som pela letra y e um de seus sons. [xiv] Nueve de Julio e Carlos Casares são dos povos do oeste da província de Buenos Aires. Ficam a uns 260 e 320 km da Capital Federal do país, respetivamente. [xv] Outra palavra do Lunfardo, ciruja define a pessoa que negocia com lixo, e também sua atividade. Assim, fazer a ciruja ou cirujear é sair pelas ruas recolhendo lixo para depois classificar e vender distintos materiais. [xvi] São chamadas cuadreras as corridas de cavalos que se organizam no campo. Pelo geral se disputam sobre uma distancia curta (300 / 800 metros) em uma reta. [xvii] Villa Soldati e Nueva Pompeya são dos bairros vizinhos do sul da cidade de Buenos Aires, Capital Federal. [xviii] Doy doble contra sencillo é uma expressão comum das cuadreras. Poderia se traduzir como dou dobro contra simples, oferta que faz aquele que tem muita confiança na vitória de seu cavalo.

 

Kadhja Bonet: The Visitor

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Difícil definir Kadhja Bonet. Multi-instrumentista, cantora, compositora não encontra gênero que a contenha dentro de suas fronteiras. Capaz de ir do jazz á psicodelia e mesmo interpretar Beatles, Kadhja chega com The Visitor para atravessar ainda mais fronteiras. Há muito de soul, da alma, em sua voz, em suas interpretações que vive com intensa vida. Deixe-se levar.

David Crosby: Lighthouse

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O também longevo David Crosby volta ao cenário com Lighthouse. Sem a presença daqueles com quem formou gerações através de seus vocais, harmonias e nomes – Graham Nash, Stephen Stills e Neil Young – Crosby chega com um rock folk característico em sua carreira, no entanto sem a mesma profundidade de antes. Não que o disco seja fraco, longe disso, é que o ex-Byrds e CSN&Y sempre foi um artesão em suas composições e em especial na companhia de qualquer um desses: Nash, Stills ou Young. O de agora, Michael League, embora acompanhe o seu ritmo, se apoia, pelo menos em uma primeira vista, mais na urgência do que o trabalho de meses a fio a tecer cada harmonia, cada verso. É um trabalho bom de se ouvir, a delicadeza de Crosby e suas melodias e vocais são sempre um alento.

 

Leonard Cohen: You want it darker

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Deixar o gosto em segundo plano é exercício quase radical quando o texto é sobre Leonard Cohen. Aos 82 anos, o canadense mantém intacto seu jeito Leonard Cohen de ser. Recita suas letras/poemas, poemas/letras, com a mesma intensidade do Festival da Ilha de Wight de 1970. (Está certo, a passagem dos anos fez com que a voz ficasse mais dramática.) You want it darker talvez seja seu último registro em vida, já que afirma estar pronto para partir. É um disco em que Cohen se volta para dentro de sim mesmo, faz confissões, há arrependimentos, dúvidas, religiosidade, e um acento consigo mesmo. São nove faixas, pouco mais de 35 minutos em que revela seu interior intenso e a emoção em cada faixa se multiplica. Leonard Cohen. É o suficiente. Basta colocar o álbum no player e deixar seguir o seu caminho.

 

Poesia: Uaíma

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Este Chronos é uma viagem de ida, sem “tempo” para voltar. Quem sabe, dentro do Chronos não existe o tempo. E esse sempre ir é a palavra e quando ela está ausente – aqui isso é comum – a música assume o posto. É a expressão do Chronos, que vive neste espaço…..de tempo. Então, o Darlan do https://uaima.wordpress.com, das  Minas Geraes com a palavra. Com a sensibilidade daquelas montanhas e do imaginário das esquinas neste destino de ir. Com a música que sei, talvez meu único idioma, volto para o abraço, sensibilizado em busca de uma tempestade de mais palavras. Obrigado, meu amigo.

O intento do viajante é ir, porque ir é o melhor remédio 

mas é certo que o trajeto a ser cumprido pelo passageiro
não pode ser de todo contado – pelo fato de que bons
e maus imprevistos acontecem quando se vai ao distante
horizonte, às terras do Nunca, avisos em idiomas nunca sentidos
na pele, e assim, no íntimo do viajor vão as alegrias mais sãs
mesmo se numa noite fria num banco de ferroviária, um banho
gelado num banheiro 2×2, uma tempestade, um acidente ou
algo como o que se passou no conto La autopista del Sur (Cortázar),
sim, é preciso ir, trocar de roupa como as cobras, de déu em déu
descobrir certos infernos, descobrir ou esquecer o céu.

(Darlan M Cunha)