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No silêncio
a sombra é fantasma no papel amarelado
Toco suas rugas com a ponta dos dedos
pele, sal e terra
Sou labirinto dentro da palavra.
Foto: Chronosfer
A estação não atrai mais os pássaros. As luzes apagadas apenas recebem o sol da manhã. As telhas descansam seus vincos tingidos pelo sereno. Deixam vazar um ou outro pequeno vão por onde é lapidada a lembrança. Há muito a pele da madeira e os seus feixes estavam secos. Todo o dia ali era noite. Não a vemos como os velhos a vêem em suas memórias, hoje procurando refúgio. Elas nunca mais estarão abertas como antes, estão misturadas como retalhos tecidos à mão. Mas, sempre há um nervo que se abre e deixa fugir um pedaço da alma. Depois, retorna às pressas com medo do horizonte tenso e em brasa do lado de fora. O que era turvo aos olhos torna−se mais turvo sobre as linhas refletidas na água dos córregos, margeando o verde desse silêncio. A estação não atrai mais do que relâmpagos e temporais. Depois, passam, deixam rastros, ferrugens e cicatrizes azuladas como as veias que recortavam os braços do último maquinista. Ali, o trem parou, e o tempo seguiu seu destino. A mudez das sombras, coberta de cinzas, fundiu−se com os trilhos e os dormentes. Não há mais como voltar. O esquecimento é apenas um território cujo mistério nasceu quando caiu o último letreiro de viagem com as histórias de muitas vidas.
I
Nem a chuva intermitente afasta Martin do banco da praça. O jornal, dobrado, borra a roupa. Quase nenhuma, seja o frio intenso. Olha as pessoas à espera do ônibus. Formam uma única massa, pensa. Desvia o olhar, leva-o ao fim da avenida. Pouco antes de a primeira quadra alcançar a metade, a noite avança. Ganha espaço da luz acesa, tem nos olhos ainda o resto do dia. Os traços das mãos são segredos, seu baú de carne e ossos e veias. Os bolsos escondem as fatias do tempo. Repartidas dia após dia, escondem o mofo mastigado pelas horas. Mede a travessia para o outro lado da rua sem o ânimo dos músculos. Fala para dentro a conversa diária entre uma palavra e outra sobrevivente do dilúvio que arrastara o vocabulário, seu sinal de visita aqui, porta aberta para quem chega. A noite seca o sono. Ajeita alma, coração e corpo entre as fissuras da madeira. Acomoda as fundas rugas, de onde nascem densos brancos, que se dobram sem rebeldia. Ao lado, rente ao chão, os sonhos dormentes feitos de relâmpagos e estrelas. Manhã, retrato sem cor, por trás das janelas despertam sombras e sol.
II
Por trás das janelas, manhã, sol em febre. Sobre os cortes úmidos do musgo, desprende o corpo da noite. Martin, trêmulo, ergue o que falta para ficar em pé. O apagar das luzes comprime a praça vazia aos estreitos castanhos dos olhos recém despertos. O traço da boca mergulha na garrafa quase vazia de água. Desce lento o alimento único. Nos primeiros passos, olhares por trás das janelas, alvoroça o silêncio das folhas sem estação. Atravessa as asas incertas dos pássaros e segue o caminhar do vento. A parede próxima indica datas. As mesmas de ontem, de muito antes. Cartaz colado em cima de cartaz, calendário. Nomes diferentes, fotografias e palavras distorcidas pela natureza do dia a dia. Segue. O rio não está longe. Do mar não sabe, nunca viu. Ouve as vozes, dentro ou de fora, pouco importa, ouve com a vertigem da hora incerta, correria para a hora certa. Nada é com ele. É passado, diz, foi presente, lembra. Os lábios adoçam o futuro: – Um dia, quem sabe. – Anda como quem escreve uma carta sem destinatário. Passa as ruas como quem pula parágrafos. Amassa o chão como se fosse a folha escrita e não gosta do que escreveu. O olhar já distante sente o mormaço do meio-dia sem a sombra, veio com o amanhecer, pensa. Sente o cheiro do rio. Sério, gosto de felicidade em preto e branco, risca o céu da boca com a língua. Para, antes de o sinal abrir verde, o feixe de sonhos avermelha sem soluços sem olhos marejados sem a morte sanguínea da palavra. O outro lado o espera. Antes de a noite chegar, a maré já terá partido no mar que nunca soube.
III
Do mar nunca soube, sabe o mar. Sob as enrugadas árvores tece, nos gestos lentos, a curva do que não sonhou. Um bando de folhas secas, voando como ave migratória, cobre as pálpebras, o esquecimento. Molha os pés. Beira do rio, margem branca, margem de vertigens. Margem. Os cabelos, poucos, conhecem o sol, acolhem seu calor. As mãos solitárias inventam movimentos, traçam no espaço desenhos, disputam com as nuvens formas. Manhã, sem janelas por perto, as cores cruzam os braços, avermelham a pele, iluminam como lampião os olhos tintos. Estilhaços acesos. A água chega, mansa, translúcida, com a face do dia. Sabor do silêncio nessa areia de ninguém. Martin, dono do vazio, mastiga o horizonte como o entardecer engole o último sol. Intenso e laranja antes do azul ser noite. Mordaça dos anos passados, as pedras insones da memória provam o gosto do instinto. Gira o corpo. Na faixa estreita entre rio e cidade, a história segue o rumo. Para trás, para frente, não sabe, sempre soube a história. Torna a olhar o traço nada uniforme das ilhas à frente. Duas, três. Não sabe, nunca soube. Passa barco, passa rede vazia, passa automóvel, passa. Fica o passado. Presente. Martin ajeita o corpo, joga às costas a mochila, caminha. Para no tempo outra vida.
Fotos: São José do Norte, Rio Grande do Sul, Brasil.
Montagem: Chronosfer.
A água rápida dos recantos toca os cascos. Os raios brilham, as nuvens secas ganham a cor da noite. O horizonte é uma cruz distante. No fim do dia o começo. As peles e os pelos se confundem na umidade dos cheiros, na aspereza das mãos, no corte trançado das rédeas. Dentro do dentro uma outra noite. A memória ainda é tênue. O destino é um velho signo cujo código se perde no laço da própria sorte. Antes, muito antes, quando a tarde ainda era um pedaço, os velhos queimaram o fumo. Depois, pouco depois, quando a luz cinza listrou os campos, as unhas da terra se entranharam pelos atalhos. A planície sem fim assombrava suas histórias. Os potros, vultos velozes, chegam ao verde, sentem a dor da lida e o sangue dos movimentos. Retornam vivos, a doma é passado. A marca dos estilhaços é o que resta na memória. Saem de dentro da ausência, correm para a margem desse rio. Chegam nas entranhas das lembranças, se livram de todos os arreios. A liberdade é mais que uma poça d´água onde os cascos escondem as feridas de suas andanças de um tempo que hoje é apenas um braço de terra seca.
Homenagem ao meu pai, Mario Rossano.
Foto: arquivo Mario Rossano, ao vencer a primeira prova disputada no Hipódromo do Cristal, com Duelo, em novembro de 1959.