Conto: O Gasto, por Marcelo Fébula

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O Gasto [1]

 

 

Os cavalos cruzaram a linha. O castanho escolhido para a última corrida da aposta 5 e 6 chegava em sexto lugar, e assim desaparecia a possibilidade de salvar o custo da aposta com cinco acertos em uma tarde de favoritos. Até esse momento, por uma espécie de cabala tinha assistido as corridas ao ar livre embora o vento e a garoa fossem mais intensos a cada momento. Desde o último andar da tribuna Paddock, antes de se refugiar na confeitaria, voltou a olhar para baixo. Mais de vinte anos atrás, naquele lugar tinha conhecido um homem cuja memória nunca esqueceu. Mas agora ai não havia ninguém, somente o reflexo das luzes sobre as telhas molhadas.

Foi no ingresso, pouco depois de passar pela catraca da entrada quando a suas costas creu ouvir uma voz reconhecida imediatamente apesar do tempo decorrido. Virou-se e olhou. Nada. Deixou livre o passo das pessoas que entravam para observar com mais detalhe. Nada. Retomou sua marcha para o interior do hipódromo enquanto sentia chegar velhas lembranças, e viveu toda à tarde com uma sensação incómoda e difícil de definir.

 

Era uma ensolarada tarde no hipódromo de Palermo. Com Roge tinham passado a tarde inteira olhando cada corrida desde um lugar diferente. Abandonaram seus lugares nas pequenas arquibancadas do final da reta a pouco de terminada uma, momento preciso em que chovem os penitentes ao Muro dos Lamentos e aparecem todos aqueles que estiveram perto de apostar pelo ganhador, mas não apostaram. Olhando no totalizador os dividendos da nova corrida, de pronto se encontraram quase no meio de uma conversa. Roge estava prestando atenção ao que diziam e com um breve olhar lhe sugeriu ficar ai. Dois caras falavam com resignada indignação de alguém ligado à prova finalizada e um terceiro, quase um gigante ao lado deles, ouvia com um sorriso condescendente. Tinha suas mãos nos bolsos das calças e olhava para o chão fazendo acenos negativos. De repente houve um pequeno silêncio e o grandão, mudando um pouco a posição do seu corpo, talvez para que mais pessoas pudessem lhe escutar, começou a falar.

–Ah… Que coisa… Neste ponto de minha vida percebi que… Olhe, a vez passada uma senhora amiga me invita a uma cocheira. Me diz –Venha, você é pessoa confiável, venha e comprove com seus próprios olhos.

O homem fez uma pequena pausa e olhou além do círculo de pessoas que o rodeavam, como observando algo na distância. Estava se assegurando da atenção que lhe prestavam. Era muito alto, sólido. Vestia um terno brilhante que uma vez tinha sido marrom, uma camisa de cor azul desbotado com o colar tão esmagado e sujo como a velha gravata, e uns obsoletos sapatos com velhas marcas de poeira. Parecia usar essas roupas desde a década anterior, como se um dia se houvesse vestido para não mudar nunca mais seu vestuário. Os cabelos grisalhos, duros e penteados para trás. Falava lenta e claramente, com uma voz profunda e de estranha reverberação.

–Chego, esta amiga me recebe, conversamos um pouco, me conduze ao lado de uma cocheira e me diz que olhe. Aparece um homem de avental branco com uma seringa assim –O grandão tirou as mãos dos bolsos e fez um gesto que visto à distância poderia prestar-se a interpretações erradas.

–Assim, não lhe minto! Cheia de um líquido amarelo. Vai, ingressa na cocheira e a injeta ao animal. A senhora amiga me diz –E? Você ainda tem alguma dúvida?

O homem soltou uma risada escura e cavernosa, como prologando o final de seu relato. Algumas pessoas dizem que às vezes os animais domésticos, depois de um longo tempo de convivência acabam se parecendo a os seus proprietários. Com este homem a teoria parecia funcionar ao revés. Seguramente os anos de hipódromo haviam-lhe mimetizado o rosto com o dos cavalos de corrida, começando pelos grandes e amarelos dentes que mostrava ao sorrir. Olhando para ele um sentia vontade de convidar-lhe uma cenoura o jogar-lhe cubos de açúcar desde certa distância.

–E que faço eu? Não aposto! Entende? Não aposto! É dizer, não é que me chegou uma versão de um terceiro, de alguém que tinha escutado um rumor. Não! Eu estava ai, eu olhei o que faziam. Esta senhora amiga ainda ria…

Com as duas mãos outra vez nos bolsos de sua calça o grandão voltou a sorrir fazendo acenos negativos e olhando para o chão.

–Enfim, por isso lhe digo. Neste ponto de minha vida…

 

Depois de alguns sorrisos e acenos de admiração no percurso da história, com Roge continuaram seu caminho até as arquibancadas maiores. Lá trás, o grandão havia retornado a sua atitude de escutar a conversa dos outros.

–Personagem, eh! –Comentou Roge se sentando em um degrau e enfiando a mão na sua inseparável carteira. –Esse se levanta de manhã e em vez de se esticar e bocejar lança um par de chutes no ar e bate um relincho. Como foi que disse? Neste ponto de minha vida…

Sim, esse cara era singular dentro da inesgotável galaria de personagens que tinham conhecido ao longo dos anos no hipódromo. Tentando descrever seu aspecto com adjetivos tais como sujo, desalinhado ou descuidado só se estava fazendo uma descrição parcial, incompleta. Roge, com sua natural habilidade para os apelidos deu com o termo justo: a partir daquela tarde, ao recordar esse personagem falariam de O Gasto.

 

Nunca conseguiu esquecer aquele gigante. Havia algo nesse homem que não podia definir, e talvez por isso o foi vinculando com pessoas fictícias da literatura. Durante um tempo o associou com aquele personagem dos romances de Geno Díaz [2], Dom Ignacio Calderón de Zocuéllamo y Zamorano del Monte, um espanhol que morava no Rio de la Plata, fazia corretagem de artigos para bazar e assegurava ter mais de trezentos anos. Com voz de trovão e verbo florido definia-se como uma espécie de cruzado solitário na incansável luta contra os italianos, uma raça que segundo sua opinião todo o vulgarizava e pervertia. Eterno caminhador das ruas, se decidia lhe dar uma trégua a suas fadigas de vendedor descansando um pouco num bar, com gesto educado puxava seu chapéu e tomando assento contava com naturalidade anedotas do Centenário ou da época colonial. Dom Ignacio desaparecia tão surpreendente e enigmaticamente como tinha chegado pelas estradas do bairro de Mataderos [3], maleta em mão, vestindo sempre uma capa longa e gordurosa, bastião inexpugnável da cultura hispânica ameaçada pelos devoradores de macarrões.

Também soube associa-lo com El Mago Mishiadura [4], presença misteriosa e fantasmagórica de um dos livros de Enrique Medina [5]. El Mago era um frequente assistente dos teatros de strip-tease, mondo em sombras onde às vezes se descobria algum espetador degolado em sua cadeira. Longo e magro, sempre com o mesmo terno enrugado, sempre com as mãos nos bolsos das calças, sempre com um cigarro fumeante nos lábios embora ninguém jamais o houvesse olhado acende-lo.

E fazendo associações, até o havia vinculado com aquele personagem de lenda que descobriu em revistas de quadrinhos: Gilgamesh, O Imortal. Um rei que vivendo com a obsessão da imortalidade foi se distanciando cada dia mais das pessoas até terminar morando num canto de seu castelo, atolado em longas reflexões e esquecido de seu povo. A queda de uma nave alienígena em campos vizinhos lhe permitiu negociar sua obsessão com um morador das galáxias chamado Utnapistim, quem antes de aceitar a sua exigência o alertou seriamente sobre a tremenda solidão que o esperava.

Sentia que isso que nunca tinha sido capaz de definir em O Gasto talvez tivesse alguma relação com a puída fidalguia de Dom Ignacio Calderón, com o mistério do Mago ou com a fantástica vida de Gilgamesh. Desde aquela tarde nunca mais o tinha visto novamente, mas apesar do tempo decorrido às vezes imaginava encontrá-lo outra vez em algum lugar do hipódromo. O escutaria então falar do pelo de Pippermint [6] depois de sua longa viagem em princípios do século? Descobriria o brilho de uma faca baixo seu casaco, pronto para executar algum treinador trapaceiro? Ou simplesmente o seguiria com cautela sem se atrever a falar-lhe, até perder sua figura entre as névoas da noite andando pelas ruas do Bajo Belgrano [7]?

 

Hoje, mais de vinte anos depois daquela tarde, as fantasias imaginadas em relação com aquele personagem que tanto o havia impressionado voltaram para sumi-lo dentro dessa sensação incómoda que não podia definir. Tinha certeza de haver escutado com clareza no momento de ingressar aquela voz profunda de estranha reverberação. A houvesse identificado entre uma multidão. Ao longo das corridas, os cafés e as conversas ocasionais, em nenhum momento deixou de olhar para todos os lados tentando descobrir a silhueta do grandão. Mesmo ficou no hipódromo muito mais do acostumado, atrasando a hora de sair, tomando o enésimo café e fazendo uma pequena aposta doble só para poder seguir pesquisando em todas as direções. Nada.

Tão focado na busca infrutífera estava que, já caminhando até o portão de saída, quase se esquece de recolher os poucos pesos que ganhou na única corrida acertada da tarde. Passou pelas janelas de apostas e seguiu seu caminho. Andou tentando se proteger da garoa, que caia muito forte e bagunçada pelo vento. Quase chegando ao portão, perto das cocheiras de exibição, um grupo de quatro ou cinco pessoas conversava animadamente. Algo nesse grupo chamou sua atenção. Seu coração começou a bater mais forte.

Soube que sua memória e seu ouvido não haviam falhado horas atrás, ao entrar. Ai, algo oculto pelas sombras, O Gasto escutava com atenção a conversa daqueles que pareciam anãos a seu lado. O mesmo terno brilhante, a mesma camisa tão esmagada e suja como a gravata, a mesma expressão no rosto com semelhanças de cavalo. De repente deixou o cone de sombras em que estava e, olhando-o diretamente, como se houvesse esperado sua presença paciente e inexoravelmente durante todos aqueles anos, com um brilho estranho nos olhos disse com sua voz profunda:

–Como estava dizendo, assim é. Neste ponto de minha vida, percebi que sou um otário.

 

 

Marcelo Fébula

Texto publicado originalmente na revista TAG – Todo a Ganador de Argentina, ano 2006.

 

 

 

[1] O título original do texto é El Gastao. Não El Gastado, como seria o correto em idioma espanhol. Na forma popular de falar, especialmente em zonas do interior da Argentina, e muito frequente essa alteração na terminação de algumas palavras. Por exemplo, abandonao’ por abandonado, etc.

 

[2] Eugenio “Geno” Díaz (Buenos Aires, 1926-1986) foi um escritor, pintor e desenhista argentino que também trabalhou como periodista em televisão e mídia impressa. As histórias de seus romances se desenvolvem frequentemente no bairro de Mataderos, onde nasceu.

 

[3] Mataderos é um bairro da zona oeste de cidade de Buenos Aires. Deve seu nome ao grande matadouro de gado inaugurado em 1889. Na atualidade uma de suas atrações é a Feria de Mataderos, feira que funciona em instalações do velho matadouro e, onde além das vendas de comidas típicas e artesanatos gauchescos, se organizam espetáculos equestres e festivais de dança e música tradicionais. Entre os cidadãos ilustres do bairro destacam-se, entre outros, o já mencionado Geno Díaz e um dos maiores ídolos da história do boxe argentino: Justo Suárez “O Tourinho de Mataderos” (1909-1938).

 

[4] Mishiadura e uma palavra do Lunfardo, gíria característica do habitante de Buenos Aires. Significa pobreza, miséria, indigência. O referido personagem El Mago Mishiadura em português poderia se chamar O Mágico Miséria.

 

[5] Enrique Medina (Buenos Aires, 1937) é um escritor argentino. Também jornalista, ator e diretor teatral. Comoveu o cenário da literatura argentina com a publicação de seu romance Las Tumbas, em 1972. Entre 1973 e 1986, ano do retorno da democracia em Argentina, sofreu persecuções e a censura de suas obras.

 

[6] Pippermint foi o primeiro cavalo que conseguiu ganhar a Quadruple Coroa do turfe argentino (Grande Prémio Polla de Potrillos, Grande Prémio Jockey Club, Grande Prémio Nacional e Grande Prémio Carlos Pellegrini), no ano 1902. Durante seus anos de competidor era um cavalo de pelo tordilho cinza escuro. A volta de uma longa viagem ao exterior, chegou à Argentina com seu pelo quase totalmente branco.

 

[7] Bajo Belgrano é uma parte do bairro de Belgrano, em Buenos Aires, vizinha ao Hipódromo de Palermo. Durante muitos anos foi quase uma prolongação do hipódromo, com inumeráveis cocheiras e locais relacionados ao turfe. O tango Bajo Belgrano que interpretou Carlos Gardel é uma notável pintura da vida do bairro nos tempos em que o turfe era sua atividade principal. Hoje todo aquele ambiente é só uma lembrança.

 

Árvore Genealógica, por Marcelo Fébula

Hoje, mais um 26 no calendário. Esse dia, passou a ser uma marca de dor e saudade. Dia em que meu pai partiu em abril de 2014 e dia em setembro passado meu irmão nos deixou. Antes, todos os meses abria este espaço com textos sobre a memória do pai. Com o tempo, o amigo de Buenos Aires, Marcelo Fébula, jornalista, músico e turfista, passou a desembarcar no cais de Porto Alegre. E em nossa amizade, nascida através do meu irmão, jamais deixou de estar presente em nossos momentos mais agudos com sua sensibilidade. Agora, chega com mais um texto que traz a vida porteña e o que nos une através do tempo, que deixa seguir seu destino. A música ao fim do texto é escolha minha, distante da música argentina, um Bob Dylan, que o Mário também admirava, interpretando Beatles.

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Árvore Genealógica

Este texto foi publicado em Setembro de 2006 e depois reeditado em 2010 nas páginas da revista TAG – Todo a Ganador, e em 2014 no blog Los Pingos de Todos. Hoje, com algumas correções, o compartilho com os amigos leitores de Chronosfer. Penso que meu querido amigo Mário Rozano houvesse gostado de ler estas lembranças.

Em memória de Osvaldo Soriano [i],

com quem pude compartilhar várias destas memórias

em uma carta corva [ii] e emocionada

quando tudo era Triste, Solitário e Final [iii].

Até o momento de começar a tramitar meu visto para ingressar no País de la Andante Burrería [iv], eu era um cara identificado com o futebol de maneira quase exclusiva. Acho que tão cedo como autorizou que eu comesse acompanhando os pratos com um copo de vinho tinto e soda, meu pai segurou minha mão para subir pela primeira vez os degraus do velho Gasómetro [v]. Entre essas memórias que acariciam a alma me vejo menino, um meio dia de domingo na cozinha do fundo do conventillo [vi] frente à travessa fumegante de macarrão com molho, enquanto na rádio Fandango no programa Calle Corrientes [vii] conta como lhes ensina a dançar o tango a reis e princesas europeus. Quando nossa partida para o estádio seja iminente e minha mãe esteja preparando nossas roupas em função do prognóstico meteorológico, ensaiaremos a repetida piada, que não por repetida deixa de fazer-nos rir. Eu, sabendo a resposta, lhe perguntarei ao Rogelio: –Como vamos ir até o estádio? E ele me responderá: –Um pouquinho a pé, e um pouquinho caminhando. E lá vamos. Rua Corrales, Avenida Centenera, Avenida Cruz, Avenida La Plata. No caminho faremos pequenas escaramuças de luta, corridas até as esquinas ou guerrilhas com o que nos oferecem as estradas: desde frutos das árvores até excrementos de cães secos. Vamos ficando mais perto, cresce o rumor da multidão, e já estamos falando do jogo. Longas filas se movimentam pelos paralelepípedos da avenida enquanto tentamos olhar a ocupação da tribuna popular. Já ingressados, ficaremos um tempo no alambrado, junto à plateia de sócios vitalícios, olhando o jogo da terceira divisão. Os tambores e as bandeiras vão marcando a voz da torcida, que com seus saltos movimenta lá no alto o emaranhado de fios e os carteis de Vinos Carrodilla, Fernet Branca e Lapiceras Sylvapen. Pelos alto-falantes se ouve o jingle de Proveeduría Deportiva e enquanto vamos subindo pelas velhas tabuas a Voz do Estádio anuncia as formações titulares dos times. Depois, a festa daquelas tardes inesquecíveis que o velho Ciclón [viii] de Boedo ofereceu a seus fãs nos finais dos ‘60 e princípios dos ‘70. Ai fica por sempre minha imagem de menino impressionado, junto a esse carpinteiro magro de mãos calosas que ficou Corvo apenas chegou desde seu povo de Nueve de Julio, no campo, quando morreu seu pai e ele tinha cinco anos. Minha história relacionada ao futebol deve ser como a de milhões de fãs no mundo. O calor das memórias de infância, ai onde se adquire uma identidade, uma adolescência talvez na fronteira com o fanatismo, e uma fase posterior mais calma e refletiva embora sem abandonar nunca aquela paixão adquirida criança. Rogelio foi um grande jogador de futebol. Ainda hoje encontro pessoas do bairro que me perguntam se sou o filho do Gato, e lembram: –Uh! Como jogava futebol teu velho! Era defensor central, com o número 2 sobre as costas de sua camiseta. Rapidíssimo (talvez dessa característica nascesse seu apelido), com boa técnica e um canhão em seu pé direito. Em épocas onde existiam longas fileiras até para ingressar num clube de bairro e às vezes isto só era possível tendo um contato influente, até a casa de Rogelio chegaram duas vezes dirigentes de San Lorenzo com a intenção de convencê-lo para treinar nas divisões inferiores do clube. Mesmo com a aprovação de sua mãe, não quis aderir à disciplina profissional nem sequer no clube que amava, e preferiu continuar sendo o atorrante [ix] de sempre, jogando até quatro partidas na mesma semana, em equipes do bairro ou com seus companheiros da fábrica, em campos profissionais ou em lotes de terra entre cardos, pedras e vidros quebrados, com botas de futebol o sem calçado. Além de nossos jogos de pai e filho quando eu era menino, pude vê-lo em ação em jogos de veteranos onde olhei que não exageravam em nada aqueles que o recordavam jogando com vinte anos.

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Entre a neblina das memórias ainda vejo como chega com tempo a todos os cruzamentos, como chuta uma bola desde fora da área e derruba dois tijolos da parede de trás de um arco sem rede enquanto um espectador grita: –Gritem babacas! Gritem que foi gol! Continuo escutando a um atacante com varias temporadas na primeira divisão falar-lhe na finalização de um primeiro tempo: –Deixa-me tocar uma bola, magro de merda! O continuo vendo, já um pouco doente de um joelho e com mais de cinquenta anos, aceitar a proposta de partidas informais no pequeno campo do clube do bairro para terminar jogando partidas que nada tinham de amistosas enfrentando jogadores muito mais jovens. Nesses tampos seu físico não era o mesmo, mas a qualidade continuava intata, como para desbaratar a um embalado e grandão número nove sem falta, como para receber uma bola que vinha desde um canto e, ingressando pela borda da área, colocá-la na base do poste mais distante do goleiro, lá onde cagam as aranhas. De Roge herdei em forma direita a paixão pela camiseta azul e vermelha e o futebol, mas não assim a qualidade para jogar. Nos esportes, ingressando na adolescência compartilhava minha militância de fã com o boxe e o automobilismo. Noites de boxe profissional no estádio Luna Park ou na Federação, ou de boxe amador no clube Unidos de Pompeya. Manhas de domingo escutando desde cedo na rádio os Grandes Prémios de Turismo Carretera [x], quando nas transmissões depois do clássico e vibrante –Adiante o avião! se relatava desde as alturas o passo do Sete de Ouro de Roberto Mouras e outros famosos carros pelos caminhos do campo. Mas o interesse máximo o tinha o futebol, e assim foi durante muitos anos. Roberto Fontanarrosa [xi], voz com entidade para opinar de futebol, disse que a frase todo tempo passado foi melhor já foi encontrada escrita com estranhos caracteres nas paredes das pirâmides egípcias. Concordo com ele na hora de desconfiar dessas palavras, mas a verdade é que um dia, cansados do perfil mafioso dos dirigentes, do negocio desvergonhado e a violência chegando a limites desconhecidos, sem deixar de ser um par de Corvos indissimuláveis nem abandonar nosso gosto por um esporte de beleza estética sem discussão, sentindo uma mistura de raiva, tristeza e saudade, com meu pai fomos espaçando nossa assistência aos estádios, tornando-nos fãs de TV e rádio. Ao mesmo tempo, cada um por seu lado ou formando parte de um grupo de amigos, visitávamos cada vez com mais frequência as arquibancadas dos hipódromos, onde novas paixões nos esperavam. As diferenças entre o ambiente de um estádio de futebol e o hipódromo, dois âmbitos populares profundamente arraigados em estas terras sul-americanas, poderiam se sintetizar em uma anedota que chamou muito minha atenção em meus primeiros tempos de burrero. Dois caras estavam envolvidos em uma dura discussão. Pouco a pouco foram subindo o volume até quase chegar aos gritos. Nesse momento um veterano que ficava a pouca distância, deixando de ler seu periódico olhou para eles e disse: –Eh, vocês! Ide para o estádio! Em nossos cenários de futebol a separação entre protagonistas e espetadores é um ameaçador arame farpado. Quando não foram suficientes os fizeram mais altos, e até de outros materiais como o acrílico, porque no somente na tribuna popular existem energúmenos dispostos a cuspir ou jogar pedras. Alguns estádios também possuem um profundo poço perimetral que limitam campo de jogo e arquibancadas, aptos para amanhã jogar uma dúzia de jacarés. O hipódromo, em datas especiais também recebe multidões. Um dia de Grande Prémio Carlos Pellegrini, por exemplo, cinquenta mil pessoas podem ficar em San Isidro. E a grande diferencia em relação com o futebol e outros esportes é que esses cinquenta mil caras não são somente espetadores: estão ai arriscando seu dinheiro em apostas, detalhe nada menor. Então, que os separa dos protagonistas? Uma cerca de um metro de altura. Enquanto se continua mexendo a panela com cheiro podre onde fervem ao mesmo tempo dirigentes, violentos e policiais, enquanto continua crescendo de forma insólita e vergonhosa a quantidade de mortos e feridos assistindo a um espetáculo esportivo, nas proximidades e dentro dos estádios ficam cercas, patrulhas, veículos de assalto e corpos de elite armados para a guerra. Voltando ao turfe, quantos policiais são enviados ao operativo de seguridade um dia de Grande Prémio? Dois. Três se algum cana [xii] ficou cansado de fazer chimarrão na delegacia. Ácido, algo impopular, mas gênio inegável e observador atento, Borges confessou alguma vez ter a impressão de que as pessoas iam aos estádios para ver ganhar a seu time, não para ver futebol. E não estava tão errado, não? Há muito tempo se estabeleceu no futebol e na sociedade toda o conceito miserável pelo qual só servem aqueles que ganham e quase não existe espaço nenhum para desfrutar de um bom jogo, independentemente das camisetas. Este modo de entender as coisas chegou para ficar, e partindo daí tudo se torna vulgar, desde a mesquinharia dos espetáculos até a violência desencadeada pelo simples fato de perder, passando pelos lamentáveis jornalistas que o sistema vai dando a luz como uma fábrica de salsichas. Neste ponto o burrero também marca diferenças: é capaz de perder seus últimos dinheiros num bravo final de meio pescoço dizendo “Está bem, se ganhou esse, está bem”. Ou ficar em pé aplaudindo ao ganhador de uma prova clássica que aponta para conquistar a tríplice coroa enquanto seu elegido chega pelejando o último posto com a ambulância. Pouco a pouco fui descobrindo e sublinhando estas diferenças. O hipódromo não era o paraíso, ai perto ficava a porta entreaberta para cair pelo abismo do jogo, e as eternas suspeitas de armadilhas como um ingrediente natural das corridas. Mas já ficava dentro daquelas apaixonantes danças do bilhete ao vencedor, e sem nenhum animo de sair. Pelo contrário, com muitas ganhas aprofundar conhecimento. Já burrero consumado, um dia comecei a me perguntar de onde viria meu grande gosto pelas corridas e os cavalos. Em relação com o futebol à influencia de meu pai era muito clara. Mas, e os yobacas [xiii]? Por que quando pisei o pela primeira vez o hipódromo teve a sensação de conhecer o ambiente e me senti um novato apenas uns minutos? Não há dúvidas. Se existe algo de fábrica, se algo vem pelo sangue, herdei o perfil burrero de meu avô materno, Cayetano, a quem não conheci. Tampouco conheci a meus avós paternos, embora suponho que os temas referidos a os cavalos não lhes seriam alheios, já que eram pessoas que nas primeiras décadas do século passado nasceram e moraram em povos do campo: Nueve de Julio e Carlos Casares [xiv]. Mas no caso de Cayetano (Gaitano para os amigos) a coisa é distinta. Nascido em Buenos Aires, contam que sempre foi homem de cavalos, principalmente por razões de trabalho. Precisava deles para puxar dos carrinhos com que trabalhava para o município, fazia a ciruja [xv] ou vendia produtos hortícolas. Seus animais pelo geral eram mansos y de força, mas também teve outros para andar e não demasiado aptos para essas atividades, como a loira Tita, que segundo conta minha mãe era muito geniosa e em seus piores dias forçava as pessoas a se esconder ou colocar o corpo no chão até que Gaitano conseguisse dominá-la. Era muito amigo de Jorge Laferrere, o boêmio da família aristocrática em cujos campos trabalhou, e sempre o encontrava no bar e restaurante El Hornero da localidade de Gonzalez Catán, sentado em sua mesa da janela. Também se conta que no meio da revolução do ano ‘55, quando se olhavam aviões de guerra cruzando o céu, se escutavam bombardeios pelo lado do centro da cidade e a gente do bairro tentava ficar dentro da proteção de sua casa, Gaitano selou um de seus cavalos e saiu ao galope a procurar os meninos (seus filhos e quem seria seu genro), que estavam trabalhando na carpintaria. A principal anedota que me marca esse assunto da herança burrera é uma que escutei relatar desde menino a minha mãe Rosa e minha a avó Beatriz. No bairro havia um cavalo ligeiro, escuro e grandão na cocheira de um vizinho, O Negro Are. Este homem, sua família e qualificados vizinhos como O Pampa Barraza acostumavam acompanhar ao cavalo as cuadreras [xvi], uma verdadeira torcida hípica vinda de Villa Soldati e Nueva Pompeya [xvii] para apoiar e colocar seus dinheiros nas patas do ídolo dos bairros. Em uma dessas jornadas, num campo pelo lado do povo de Cañuelas, recém-chegados a pista Gaitano já andava por ai ofertando doy doble contra sencillo [xviii] quando desde o caminhão baixaram ao ligeiro, que caminhou uns passos e ficou quieto olhando fixamente o horizonte. Nesse momento o Gaitano disse uma frase que perdura até nossos dias, pelo menos na memoria de nossa magra família: –Cavalo que olha para o campo, não perde. Horas depois ganhou o grandão e houve churrasco, vinho e celebrações até altas horas da noite, com vários fãs felizes e espalhados baixo as árvores. Felizes e bêbados. Existem mais anedotas de meu avô, os cavalos e as corridas no campo, mas se alguém se mostrara cético dizendo que em definitiva são coisas que eu não vivi pessoalmente, posso contar algo que vivi e talvez certifique melhor essa teoria da herança burrera. Um dos filhos de Cayetano, meu tio Carlos (também conhecido pelo apelido de Potranca), nasceu muito, muito burrero. Por essas coisas que tem as famílias, o vejo mais ou menos uma vez cada cinco anos, é dizer que até à tarde que vou referir, ele conhecia pouco e nada dos costumes de seu sobrinho. Era uma tarde de Grande Prémio Carlos Pellegrini, não tinha dinheiro nem para viajar até o hipódromo e decidi olhar as corridas na agencia hípica do bairro. Apostei meus únicos bilhetes e tive a sorte de acertar a aposta exata da corrida internacional da reta que ganhou o cavalo Turco Zaino. Momentos depois, enquanto tomava uma cerveja no bar da agencia, vi a meu tio. Se houvesse lhe contado que havia comprado uma casa, que depois de muito estudo me tornei médico ou que no dia anterior tinha sido pai, acho que ele não se houvesse emocionado tanto como descobrindo que tinha um sobrinho burrero. Creio que até vi alguma lágrima em seus olhos. Batia palmadinhas em minhas costas, ria, me apresentou alguns de seus amigos e aceitou que lhe invitara um copo de cerveja enquanto olhávamos aquele Pellegrini ganhado pelo grande Chullo. E aqui estou. Durante muitos anos me neguei a passar pela esquina de Avenida La Plata e Las Casas. Ainda fico estremecido lembrando o tremendo silêncio do estádio desmantelado ao anoitecer. Só consegui voltar à tarde em que uma caravana partiu dai rumo à inauguração da casa nova. Como me houvesse gostado comemorar junto a Roge os títulos de Campeão que chegaram depois de tantos anos… E aqui estou. Às vezes, caminhando pelo sector de exibição do hipódromo, quando algum cavalo de repente interrompe seu passeio e fica parado olhando algo lá longe, lembro aquela frase de meu avô, o baixinho Cayetano:  –Cavalo que olha para o campo, não perde.

Marcelo Fébula

[i] Ovaldo Soriano (Mar del Plata, 6/1/43 – Buenos Aires, 29/1/97) foi um jornalista e escritor argentino, reconhecido pelo público e pela crítica internacional. Fumante inveterado, coruja de noite, militante de partidos de esquerda e grande fã de San Lorenzo. [ii] Corvo é o apelido dos fãs de San Lorenzo. Aquela carta corva foi uma comunicação entre dois fãs do time. [iii] Triste, Solitário e Final (1973) foi o primeiro romance de Osvaldo Soriano. Para muitos entendidos, sua obra maior. [iv] El País de la Andante Burrería es una feliz expressão do escritor Jorge Larroca em seu livro “Entre Cortes y Apiladas”. No idioma Lunfardo, a gíria característica do habitante de Buenos Aires, burrero é o aficionado ao turfe. O referido País é aquele que habitam os burreros.[v] O Gasómetro foi o apelido do velho estádio de madeira do clube San Lorenzo. Ficava em Avenida La Plata entre as ruas Inclán e Las Casas. Foi inaugurado em 1916 e desmantelado em 1979. Em 1993 o clube inaugurou seu novo estádio, qué é chamado O Novo Gasómetro[vi] Conventillo é uma casa grande e antiga, com banheiros e lavandarias em comum e muitos quartos onde moram pessoas humildes, pelo geral construída em chapa de metal e madeira. Tiveram seu maior auge em Buenos Aires nos começos do século vinte, os anos onde o país recebeu grandes quantidades de imigrantes. Hoje estão quase erradicados. Entre os poucos que sobrevivem, alguns foram remodelados e funcionam como museus ou lojas comerciais, especialmente no bairro de La Boca. [vii] Calle Corrientes (rua Corrientes) foi um exitoso programa humorístico de rádio. Um de seus muitos personagens era o referido Fandango, personificado pelo ator Oscar Casco. Nesse programa nasceu o apelido da famosa Avenida Corrientes de Buenos Aires: “A rua que nunca dorme”. [viii] O Ciclón é um dos apelidos do time San Lorenzo. Boedo é o bairro de Buenos Aires onde nasceu (quando o clube foi fundado Boedo ainda não existia, essa zona da cidade pertencia ao bairro de Almagro, por isso o nome completo do clube é Club Atlético San Lorenzo de Almagro).[ix] Atorrante é uma palavra da gíria Lunfardo, define a uma pessoa preguiçosa e pouco trabalhadora. [x] Criada em 1939, o Turismo Carretera é a mais importante e popular categoria o automobilismo argentino. Ao longo da sua história muitos de seus carros foram identificados pelos apelidos: A Vermelhinha, O Trator, A Lebre, O Quadrado, O Trovão Laranja, O Televisor, A Negrinha, O Baixinho, O Sete de Ouros, O Míssil, O Canhão, A Laranja Mecânica, etc. [xi] Roberto Alfredo Negro Fontanarrosa (Rosario, 26/11/44 – ibid. 19/7/07) foi um notável humorista gráfico e escritor argentino. Publicou coleções de piadas soltas, historias em desenhos, romances, livros de contos, e também incursionou no cinema como intérprete (brevemente), escritor e autor. Muitas de suas obras foram adaptadas para o teatro. Pai do personagem Inodoro Pereyra e seu cachorro Mendieta, embora não se preocupava pela opinião do establishment literário, está considerado um dos melhores contistas argentinos. [xii] No idioma Lunfardo a palavra cana tem o doble significado de policial e prisão. Assim, estar en cana ou encanado é estar preso. O policial nesta gíria também é chamado tira, rati, yuta, cobani, gorra, botón, etc. [xiii] Dentro do Lunfardo existe uma espécie de sub-gíria chamada vesre ou verre. É simplesmente falar ao revés, trocando a ordem das sílabas das palavras. Assim, yobaca não é outra coisa que caballo (cavalo). Neste caso tendo em conta que no falar habitual do habitante de Buenos Aires se troca a letra ll e seu som pela letra y e um de seus sons. [xiv] Nueve de Julio e Carlos Casares são dos povos do oeste da província de Buenos Aires. Ficam a uns 260 e 320 km da Capital Federal do país, respetivamente. [xv] Outra palavra do Lunfardo, ciruja define a pessoa que negocia com lixo, e também sua atividade. Assim, fazer a ciruja ou cirujear é sair pelas ruas recolhendo lixo para depois classificar e vender distintos materiais. [xvi] São chamadas cuadreras as corridas de cavalos que se organizam no campo. Pelo geral se disputam sobre uma distancia curta (300 / 800 metros) em uma reta. [xvii] Villa Soldati e Nueva Pompeya são dos bairros vizinhos do sul da cidade de Buenos Aires, Capital Federal. [xviii] Doy doble contra sencillo é uma expressão comum das cuadreras. Poderia se traduzir como dou dobro contra simples, oferta que faz aquele que tem muita confiança na vitória de seu cavalo.

 

Exclusivo: O predomínio que vem dos Andes

Liberal 1

Passados alguns dias após a grande disputa do dia 14 em Palermo, o GP Latinoamericano 2015 continua rendendo comentários e reflexões sobre o resultado, a vitória extraordinário do Peruano Liberal (foto acima) e como o Mário Rozano esteve em Buenos Aires, cobrindo o evento maior do turfe continental, ele nos passa, com exclusividade, suas impressões sobre a prova e seu desfecho. Ao titular do De Turfe um Pouco (http://mariorozanodeturfeumpouco.blogspot.com) agradecemos a valiosa contribuição e desejamos que os turfistas aproveitem o que há de melhor em corridas de cavalos em seu site e eventualmente por aqui.

De turfe um pouco

O PREDOMÍNIO QUE VEM DOS ANDES
O andino Liberal (Meal Penalty) Impôs condições sobre Dont Worry com Win “Maravilla” Talaverano espetacular…
As últimas seis edições do evento continental, promovido pela Organización Latinoamericana de Fomento del Pura Sangre de Carrera – OSAF, entidade mater do turfe na América do Sul – Chile e Peru se alternaram nas conquistas, tanto como locais, com BelleWatling (2010) no Club Hípico de Santiago; Sabor a Triunfo (2013) no Hipódromo Chile e o norte americano com as cores do Perú, Lideris (2014) em Monterrico; ou como visitantes indigestos iniciando a série com Bradock (2011) em San Isidro e Quick Casablanca (2013) no Argentino, culminando neste ano com a incontestável vitória do potro Liberal sobre os 2.100 metros do Argentino de Palermo.
O representante argentino em 2007, Good Report (URU) no aprazível cenário do El Bosque, registrou a quinta e derradeira vitória da Argentina na justa continental.
Cinco postulantes argentinos integraram o moderno Starting Gate irlandês, na condição de favoritos ao pódio máximo. Após muita discussão para completar a nomeação, os nomes de Ídolo Porteño, Interdetto, Blood Money, Papa Inc e Dont Worry foram confirmados.
Contudo, desde o inicio da semana era corrente que o titular dos GGPP Dardo Rocha e Carlos Pellegrini, Ídolo Porteño, plebiscitado por antecipação, não mostrava nos ensaios finais a disposição de outrora. Entretanto, o fato não provocou na crônica local qualquer apreensão, e, sobretudo nos aficionados que o elegeram com cotação de $2,70 por unidade na prova -, e a convicção do quinto impacto argentino crescia na medida dos aprontes, sobretudo com o ótimo e regular Dont Worry.
O consenso indicava os potros Alex Rossi e Liberal pela hípica andina como inimigos em potencial. Ainda que o potro Liberal apresentasse resquícios de um corte no boleto esquerdo produzido no boxe de Monterrico. Porém com assistência veterinária permanente, liberal trabalhou sem nada sentir.
O Chile, mesmo desfalcado do Derby Winner de Valparaíso, Il Campione e do vencedor do prestigioso St Leger, Southern Cat, sempre poderosos na competição, apresentavam sua principal carta: Katmai.
Hielo, o brasileiro e double-event do GP Ramirez, um crioulo do Haras Di Celius, com as cores orientais e preparo do múltiplo campeão Pico Perdomo, movimentou as matinais em Palermo. O uruguaio Generoso da ecurie Phillipson, causava curiosidade pela sua campanha inexpressiva e fechar a raia era uma certeza para as cores verde e amarela.
Desde os vamos, a carreira foi dominada pelo potro Alex Rossi ($17,70), seguindo pelo ligeiro Blood Money, que não reprisou anteriores; Ídolo Porteño, logo recolhido pelo Ricardo, Interdetto ($7,20) e Liberal ($9,15), com Win Talaverano especulando os dianteiros, Katmai e Hielo algo atrasado, e assim percorreram a reta oposta sem variantes. Com Alex Rossi preservando a dianteira contornaram a última curva, com Katmai ($45,80) avançado pela cerca e Ídolo Porteño desalojando Iterdetto por fora aspirava à ponta e no inicio da etapa final. No último furlog a cena recebeu novo colorido e Dont Worry ($6,95) pelo meio da raia engolia os rivais e as 17 mil almas presentes começavam a comemorar. Katmai (Scat Daddy) por dentro sustentava o segundo posto, enquanto Ídolo Porteño (Jump Start) não respondia e, mais aberto em insinuante e avassalador sprint surgiu Liberal para se impor no epilogo com meio pescoço sobre Dont Worry Worry (Sultry Song) com um assustado Rodrigo Blanco que não entendeu o que estava se passando. Todo o tramite registrado em 2’09”81/100 com parciais de 24’44, 45’98, 1’12’97 e 1’37”71. O quinteto da tabela com recompensas se completou com o pacemaker inca Alex Rossi (Freud).

Liberal 2

Liberal, um castanho de três anos, filho de Meal Penalty (USA) em Democracia (PER) por Play The Gold (USA), de criação do Haras Los Azahares e crédito da quadra The Fathers (PER). Notável campanha de Liberal, com oito exibições públicas, cinco vitórias (quatro clássicos, dois de graduação máxima; Derby Nacional e GP Latino Americano, um grupo três, Henrique Meiggs, além da 2ª colocação na Polla de Potrillos-G1).

Por Mário Rozano

Fotos: HAPSA – Hipódromo Argentino de Palermo.

Turfe, Grande Prêmio Bento Gonçalves: O meu Bento inesquecível não assisti. Narrei

BENTO 61

Guri de sete anos nada entende de turfe. Pelo menos não em 1961. Em meu jeito de guri, era muito mais que turfista: rivalizava com Vergara Marques na narração das corridas. Ah, rivalizava mesmo. E as minhas narrações eram muito mais emocionantes, os páreos mais disputados, e o Vergara ficava na poeira da raia do Cristal. Em último! Bom, isso é mesmo verdade. Colecionador de bolinhas de gude coloridas, um dia qualquer da minha infância dei nome a elas. De cavalos. Os nomes vinham do meu pai, o Mário Rossano, quando falava com a mãe, do meu avô Dr. Jardelino Driesch e dos amigos que iam lá em casa. E o batismo acontecia: El Gustavo, Ouropombo, Ourodá, Lord Chanel, Ouroduplo, Estensoro, Zago e outros tantos que não lembro mais. Não recordo se esses cavalos estavam em 61 no Cristal, alguns deles vindos do saudoso Moinhos de Vento. Posso ter misturado os anos, pois continuei “narrando” até os dez anos. E também não ligava para a época em que haviam estado nas pistas. Se gostava do nome, escolhia uma bolinha e já estava inscrito para algum páreo. Uma tardia confissão: eu gostava mesmo dos cavalos da tradicional blusa Ouro, manchas pretas. E fantasiava com uma que nunca meus olhos viram: Salmon, mangas pretas. E no tapete na sala principal de nossa casa da Quintino Bocaiúva estava a pista do meu hipódromo. Entre as pernas da mesa e das cadeiras, fazia uma ginástica e tanto para que os meus programas acontecessem. Por óbvio, ganhavam as bolinhas que mais gostava. E quase sempre de atropelada, após disputa acirrada pela ponta. E o jóquei, nem preciso dizer quem era o grande campeão.

Não me ligava muito em datas, o primeiro ano do então primário se aproximava do fim, se é que já não havia encerrado o ano letivo. Novembro, mês em que o calor ia se aproximando devagar, para começar em dezembro com força. Novembro de 1961, data da maior prova do turfe gaúcho, o Grande Prêmio Bento Gonçalves. O pai montava Lord Chanel. Saiu de casa dizendo que venceria. Ficamos todos em volta do rádio. Todos, não. Fui para baixo da mesa, narrar o meu Bento. De repente, um grito. Dois, ou três, não sei quantos, por mais que me esforce, minha memória não alcança. Sei apenas que minha mãe gritava “o Mário ganhou o Bento”. Pouco depois, levantei e fui junto ao rádio. O silêncio…e a voz da mãe: “Foi desclassificado”. Não sabia bem o que significava, mas pelos olhos vermelhos dela algo grave acontecera. Comecei a chorar também.

Mais tarde, o pai chegou. Mais silêncio, cabeça baixa. Derrota, longa suspensão. Ninguém pode imaginar o que foram aqueles dias e meses depois da desclassificação de Lord Chanel em favor de Argonaço. Ninguém pode sequer supor como vivemos aquele tempo semeado de injustiças. Ninguém pode amenizar o que ouvimos e que até hoje está bem presente. Ninguém. Somente a nossa família e alguns amigos mais próximos.

Hoje, passados mais de 50 anos, a convicção da injusta decisão da Comissão de Corridas da época ficou firmada ao longo desse tempo, quando o pai falava a respeito, e jamais, em qualquer circunstância, mudou o seu depoimento. Foi sempre o mesmo. Até o quando o encontrei caído após sofrer AVC, para mantê-lo lúcido, enquanto esperava pelo socorro, perguntei sobre a ida ao Rio de Janeiro em 52 e sobre o Bento de 61. A história foi repetida tal como contara 50 anos antes para quem quisesse ouvi-lo.

O pai partiu e nunca soube que antes de o Bento ser corrido de verdade, eu havia narrado o meu Bento e ele e Lord Chanel cruzaram o disco de chegada em primeiro. No hipódromo dos meus sete anos, nenhuma comissão de corridas desclassificou Lord Chanel. Não vi o que seria o meu Bento inesquecível. Naquela tarde, debaixo da mesa de casa, narrei a vitória de Mário Rossano.

EU E O PAI

Na reprodução lá de cima do post, colagem sobre material jornalístico do GP Bento Gonçalves de 1961.

Na foto abaixo do texto, o “narrador”, então com oito anos, após a vitória de Mar Báltico no Criterium de Potrancos de 1962 sobre Ourotrunfo, Quesito e El Tronio. Nesse dia, eu não narrei o páreo. Nesse dia, eu assisti a vitória de Mário Rossano e pude recebê-lo para a tradicional fotografia dos vencedores, com o seu treinador senhor José Celestino da Silva.

Fotos: Acervo Mario Rozano.