Ayres Pottoff, Daniel Woff & Rodrigo Alquati: Beatles

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O universo dos Beatles é um mar profundo de águas acolhedoras. Por elas, navegam os mais variados gêneros, os mais diversos estilos e músicos e instrumentistas e cantores e cantoras. Águas que não se esgotam. Águas que se renovam. Os instrumentistas gaúchos Ayres Pottoff, flauta, Daniel Wolff, violão, e Rodrigo Alquati, violoncelo, os três com formação clássica, mergulham no mar de Lennon, McCartney, Ringo e George. O que pode parecer um simples mergulho ou apenas uma travessia se revela a busca de uma sonoridade em que a conjunção dos instrumentos possam conduzir que os ouve a ingressar na viagem. Trabalhar a obra dos quatro de Liverpool não é tarefa qualquer. O esforço traduz o talento e sensibilidade com que cada tema escolhido é exposto ao mundo. São águas mais que cristalinas. O trio se entrelaça em harmonias próprias de cada um, sendo conduzidos pela eternidade da maior banda de todos os tempos. E de repente estamos diante de um outro universo: o encanto dos Beatles com gosto de sul do Brasil.

Foto: Martha Reichel (http://marthareichel.wordpress.com)

Maritaca Quintet: Waterbikes

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A paixão pela música brasileira é universal. Há em novas várias “músicas” uma síntese da nossa cultura, do nosso jeito de ser, de nossas influências, e um Brasil por inteiro se harmonizando entre tantos gêneros e fronteiras. Não por acaso, o dinamarquês Thomas Clausen, pianista que tocou com Miles Davis, Dexter Gordon, Dizzie Gillespie, Stan Getz e Chet Baker, além de uma bagagem de 16 discos gravados, é mais um apaixonado pela mpb. E também não por acaso, formou um trio com os instrumentistas cariocas Afonso Correia e Fernando De Marco. A bossa-jazz entrou no repertório dos três, que atraíram outros dois músicos de primeira linha: Teco Cardoso e Léa Freire. Maritaca Quintet é o resultado da união dos cinco. Waterbibes, gravado na Dinamarca, é a síntese do maracatu, da bossa, do choro, do samba com o jazz. Sem fronteiras, diga-se. Disco emblemático pela gama de possibilidades sonoras, pelas teias musicais delicadas e bem tramadas e sobretudo pela integração entre os músicos. Mais que uma síntese, uma obra completa.

 

Tango e cavalos de corrida

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Hoje, dia 26, mais um mês em que esse fruto (saudade) que a cada dia fica mais maduro e ainda mais forte fica mais intenso amanhece ensolarado como tem sido o verão no sul do Brasil. O pai adorava tango. E a milonga. E uma taça de vinho tinto seco. E Carlos Gardel. E cavalos de corrida. E a família. Ingredientes para uma vida feliz. Ele ensinou a nós, meus irmãos e eu, a ouvir a música do Prata como se fosse a nossa música. E não havia jeito de aparecer com o rock, o música popular brasileira, a gaúcha, ou qualquer outro gênero. Tango. Bom, abria pequenas exceções: Frank Sinatra, Nat King Cole e outros mais do jazz lá bem de trás.  Aos poucos, começou a gostar de tango mais moderno, Piazzolla, e outros mais. Até mesmo os tangos mesclados com o rock, com o erudito, com o eletrônico. Mais perto de sua partida, só ouvia Gardel. E com os olhos fechados cruzava o disco final de uma corrida. (há tudo a ver entre o tango e as corridas. “Por una cabeza” é um desses tangos que entrelaçam ambos.) Deixo aqui, um disco especial, Tinta Roja, do Andrés Calamaro que ele gostava muito. E toda a vez que ele preenche todos os espaços, sinto que a saudade está alimentada e a presença do pai cada vez mais viva.

The Decemberists: The king is dead

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Rótulos contemplam o que o mercado não consegue qualificar como gênero. Pelos menos, alguns deles atravessam fronteiras entre um e outro, criando outros gêneros e ingressando em universos sonoros senão novos ao menos com tonalidades que desafiam o arco-íris musical. E do próprio mercado. O The Decemberists está catalogado em cinco: indie rock, indie folk, folk rock, pos barroco e art pop. Quase escolha múltipla. Confesso que não marco nenhum delas, e prefiro ouvi-los em toda a sua plenitude, hummmmmm, folk. Feita a escolha, a sexta se estivesse na lista, e contradições à parte, está na mescla e variedade de instrumentos que o grupo mantém a sua fortaleza imune a ataques da mídia. Texturas bem definidas, violões afinados, vocais harmonizados, por vezes lembram, de longe, o R.E.M. E isso, não é por mero acaso. Peter Buck está em The king is dead. Outro ingrediente significativo está nas letras, que fogem do lugar comum e criam ambientes fantásticos e retratam de certa forma coisas do dia a dia de qualquer pessoa, de qualquer situação da vida. Em seu sétimo disco, o The King é o sexto, o The Decemberists marca presença no palco da música com a multiplicidade dos rótulos, porém com talento.

 

 

 

 

Elomar em Concerto

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Elomar é um menestrel. Violeiro enraizado em seu tempo, atravessa todas as linhas que tentam rotular suas composições. Elomar Figueira Mello é cantador, cronista e tudo mais. Em Concerto traz fragmentos da antífona “Incelença ad Moribundum Solem” e partes da “Balada do Filho Pródigo” com uma série peças e cânticos de louvor concebido para o Quarteto Bessler-Reis e coral. A regência coube ao violoncelista Jaques Morelenbaum, garantia de arranjos sensíveis e dentro das harmonias do compositor. No concerto, a conjunção de todos esses elementos formam um corpo, que se integra ao seu violão e voz, tal qual um casamento. E dessa união, os fragmentos parecem também se tornar um único quadro onde as cores e movimentos se moldam à perfeição. A obra criada pelo trovador é gigantesca em beleza, realismo e alma. Um disco que chega aos poucos em nossa corrente sanguínea.

Nick Cave and The Bad Seeds

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O australiano Nick Cave sempre foi um músico e poeta transgressor, no seu melhor sentido. Introspectivo, um inverno por dentro, necessitando do fogo da lareira. Para muitos, estilo gótico, para outros, rock alternativo, pós-punk, experimentalismo explícito. Qualquer que seja a forma com que Cave seja rotulado, ele está com a alma intimista à frente. Às vezes, incursiona por canções mais alegres, talvez para quebrar o ambiente fechado em que suas composições se encontram hospedadas. Uma passagem por cada disco revela faces muito semelhantes, todavia, a criatividade de Nick cresce se em cada faixa conseguimos sentir suas nuances e variações delicadas e quase imperceptíveis. O que parece totalmente perdido, se abre em texturas originais e ainda que a introspecção vá seguindo o seu curso natural, os tons melancólicos se dissolvem e nasce a construção de um universo multifacetado de harmonias e vocais surpreendentes em suavidade. Exemplo? Ouça “Death is not the end”, cuja assinatura de Bob Dylan não é peso algum para Nick Cave e as convidadas P.J. Harvey e Shane MacGowan. E sigam a viagem com ele, vale e muito.

 

Dylan LeBlanc: Cautionary tale

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Logo após lançar Paupers Field (2010), Dylan LeBlanc foi saudado como um Neil Young jovem. Dois anos passados, Cast the same old shadow chega ao público com as mesmas características do primeiro: a melancolia. Influências ou rótulos à parte, LeBlanc constrói um trabalho folk com variantes pop/rock com quê de country de consistência sonora. Com Cautionary tale o cantor e compositor inicia, quem sabe, um novo caminho. Sem se afastar da origem, lança novas cores ao seu arco-íris harmônico com nuances de cordas mais encorpados e criativos. O violoncelo, o violino e a viola se agrupam com tamanha exuberância que a melancolia, embora presente em algumas faixas, dá sinais de despedida. Mais maduro, sua performance contém variações que formam um escudo ao seu jeito de ser, o que de alguma maneira traduz sua evolução como pessoa e músico. Se continua ou se é uma espécie de Neil Young  pouco importa até porque ser Neil Young –  em todos os sentidos – é algo impossível.  No entanto, são inegáveis o seu talento e sua criatividade. Vale fazer uma pequena viagem através de suas texturas poéticas e musicais.

 

 

Zamba de los mineros, por Marcelo Fébula

Janeiro avança, lento e quente no sul do Brasil. E chega até este Chronos material exclusivo assinado pelo Marcelo Fébula, jornalista e músico, que tem olhar sensível sobre a cultura de seu país, a Argentina. E de lá, atravessando o Prata e encontrando o Guaíba, a Zamba dos mineros aguarda a visita dos que aqui achegam. omeu abraço a vocês todos e o meu muito obrigado ao Marcelo.

 

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Todas as grandes obras têm uma lenda, uma tradição oral que fala de sua criação. No caso de “Zamba de los Mineros”, a história diz que em 1956 o poeta Jaime Dávalos foi invitado por amigos mineiros salteños que haviam feito um contrato para a exploração das minas de ouro de Culampajá, para conhecer o lugar.
Em uma viagem que dura pelo menos um par de dias, eles foram passando por Cafayate, Santa María e Hualfín até Corral Quemado, e ai montaram acampamento na loja geral de Don Marcelino Rios. A paisagem, as histórias de ouro que contavam os paroquianos que visitavam a loja, sua visita as minas acompanhando os mineiros e o vinho roxo do lugar foram a inspiração de Jaime para escrever a zamba.
Diz-se que quando todos estavam prontos para voltar para a cidade de Salta, Marcelino lembrou-lhes o que deveriam pagar, uma adição bastante cara. Dávalos então disse a ele que iria escrever uma canção em sua homenagem com a qual seria muito famoso, mas o dono da loja não se comoveu com a sua alegada e futura fama, e cobrou a conta.
Mas ao longo do tempo, aquela profecia de Jaime foi cumprida. Porque os viajantes chegavam a Corral Quemado perguntando onde estava “a loja de Marcelino Rios, o homem da Zamba de los Mineros”.
A obra tem música de Gustavo “Cuchi” Leguizamón, um dos gigantes da música argentina. Com desculpas aos leitores por os prováveis erros, aqui vai uma tradução da poesia:
 
 
Zamba dos Mineiros
Passarei por Hualfín
vou para Corral Quemado
ao lugar de Marcelino Rios
para me compor com vinho roxo.
 
Eu sou esse cantor
nascido no carnaval,
mineiro da noite trago
a estrela de quartzo do Culampajá.
 
Moinho do maray
que mói tão ansiosamente,
Marcelino pisando vinho,
Paredes o ouro do Culampajá.
 
Eu não sei, eu não sou,
ando porque ando apenas,
quando abrace-me a morte
só esta zamba me vai lembrar.
 
A zamba dos mineiros
tem só dois caminhos
morrer o sonho do ouro
viver o sonho do vinho.
As minas de Culampajá são minas de quartzo que ficam a 3600 metros sobre o nível do mar. Foram exploradas desde os tempos antigos em galerias subterrâneas.
Quando o poeta fala sobre a noite está se referindo à escuridão absoluta dos poços profundos, onde quartzo é cristalizado em vazios chamados drusas ou geodes. Talvez esses cristais sugeriram a Dávalos uma estrela comparável com as do céu na noite escura.
Também faz uma comparação entre Don Paredes, o mineiro que mói o ouro em um moinho de pedra indiano chamado maray, e Marcelino, que pisa uvas vermelhas para fazer vinho.
E o famoso refrão da zamba é tuda uma síntese da obra poética de Dávalos: ouro e vinho, minas e mineiros, vida e morte, lembrança e olvido (em outra das suas obras ele escreveu: “Venho do rouco tambor da lua / na memória do puro animal / sou uma lasca de terra que volta / para su escura raiz mineral”)
O Dr. Ricardo Alonso, doutor em ciências geológicas, em 2011 viajou especialmente a Corral Quemado, buscando as raízes da Zamba de los Mineros. “É um pequeno oásis nas áridas montanhas da província de Catamarca. O antigo armazém de Marcelino Rios é preservado, pintado de cor rosa, mas agora é casa de família. Don Marcelino está enterrado no primeiro vault no cemitério. Sua filha Eulália, que foi diretora de escola, morreu um par de anos atrás. As minas de Culampajá são abandonadas. A memória desses eventos está desaparecendo lentamente, mas a zamba está viva, vive profeticamente, como sonhou o nosso eminente poeta Jaime Dávalos, muito longe, e há muito tempo.”
Outro poema de Dávalos, “Temor del Sábado”, é normalmente utilizado como prólogo da zamba. Diz-se que o único manuscrito conhecido do poema foi salvo por outra filha de Marcelino Rios quando a antiga casa da família ficou desabitada.
A obra refere-se ao padrão que deve enfrentar mineiros necessitados de uma melhoria no salario, e aos trabalhadores confrontados com a usura.
 
 
Medo do Sábado
O padrão tem medo que fiquem embriagados com vinho os mineiros.
Ele sabe que entra-lhes como um fluxo de gritos no corpo.
Que enrolados nas cavernas da sangue vai encontrar-lhes o silêncio,
o escuro silêncio da pedra que come sombra dentro do túnel.
Que vai voltar roxa com bagualas (*) do fundo dos ossos
sua voz, batendo dura como um punho no tambor do peito.
Com pupilas abertas como talhos vai pedir um aumento
enquanto quebre girando entre as mãos a assa do chapéu.
E os olhos de poeira e pena triste caindo como manchas no chão.
É necessário esconder o vinho entre fechaduras, o vinho briguento,
é necessário esconder o vinho como um crime, o vinho mendigo.
Que não cai uma gota mais sobre a boca seca do mineiro,
onde o grito e coberto com coca, e com álcool a sede de amor e beijos.
É necessário esconder a primavera em sangue do vinho que descobre os segredos.
O padrão ordenou salva-lo, e tornou-se vinagre em confinamento.
À noite tem vómitos e elfos de lua dançando em seu corpo.
Os olhos do patrão vigiavam-lhe acima do sonho.
Os olhos do patrão tem dois anjos.
Dois anjos com insônia de medo.
(*) A baguala é um gênero da música popular originado no norte/oeste da Argentina pelas comunidades indianas que habitaram os Vales Calchaquíes.
Entre as muitas versões desta obra, escolhi a que registraram o riojano Prudencio “Chito” Zeballos acompanhado por o fenomenal violão de Luis Amaya. E também o poema “Temor del Sábado” na voz de seu autor (ambas versões têm ligeiras modificações em relação ao traduzido aqui)

Mayte Martín: De fuego y de agua

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Catalã de Barcelona, Mayte Martín é sinônimo de flamenco, bolero, e quês de milongas argentinas. Há traços visíveis e invisíveis em suas composições e nas interpretações que sua alma conduz, de cada gênero como se em determinado momento todos são apenas um. A síntese e a diversidade convivem com a generosa sensibilidade com que Mayte atravessa as linhas para além dos horizontes dos versos de Garcia Lorca ou as harmonias de Paco De Lucia. Há um todo que se completa e é sempre começo. Depois de alguns dias de completo recesso, seja este post o meu abraço de 2016 seja feito de fogo e água na busca (e encontro) da paz, da alegria e dos sonhos.