Janeiro avança, lento e quente no sul do Brasil. E chega até este Chronos material exclusivo assinado pelo Marcelo Fébula, jornalista e músico, que tem olhar sensível sobre a cultura de seu país, a Argentina. E de lá, atravessando o Prata e encontrando o Guaíba, a Zamba dos mineros aguarda a visita dos que aqui achegam. omeu abraço a vocês todos e o meu muito obrigado ao Marcelo.

Todas as grandes obras têm uma lenda, uma tradição oral que fala de sua criação. No caso de “Zamba de los Mineros”, a história diz que em 1956 o poeta Jaime Dávalos foi invitado por amigos mineiros salteños que haviam feito um contrato para a exploração das minas de ouro de Culampajá, para conhecer o lugar.
Em uma viagem que dura pelo menos um par de dias, eles foram passando por Cafayate, Santa María e Hualfín até Corral Quemado, e ai montaram acampamento na loja geral de Don Marcelino Rios. A paisagem, as histórias de ouro que contavam os paroquianos que visitavam a loja, sua visita as minas acompanhando os mineiros e o vinho roxo do lugar foram a inspiração de Jaime para escrever a zamba.
Diz-se que quando todos estavam prontos para voltar para a cidade de Salta, Marcelino lembrou-lhes o que deveriam pagar, uma adição bastante cara. Dávalos então disse a ele que iria escrever uma canção em sua homenagem com a qual seria muito famoso, mas o dono da loja não se comoveu com a sua alegada e futura fama, e cobrou a conta.
Mas ao longo do tempo, aquela profecia de Jaime foi cumprida. Porque os viajantes chegavam a Corral Quemado perguntando onde estava “a loja de Marcelino Rios, o homem da Zamba de los Mineros”.
A obra tem música de Gustavo “Cuchi” Leguizamón, um dos gigantes da música argentina. Com desculpas aos leitores por os prováveis erros, aqui vai uma tradução da poesia:
Zamba dos Mineiros
Passarei por Hualfín
vou para Corral Quemado
ao lugar de Marcelino Rios
para me compor com vinho roxo.
Eu sou esse cantor
nascido no carnaval,
mineiro da noite trago
a estrela de quartzo do Culampajá.
Moinho do maray
que mói tão ansiosamente,
Marcelino pisando vinho,
Paredes o ouro do Culampajá.
Eu não sei, eu não sou,
ando porque ando apenas,
quando abrace-me a morte
só esta zamba me vai lembrar.
A zamba dos mineiros
tem só dois caminhos
morrer o sonho do ouro
viver o sonho do vinho.
As minas de Culampajá são minas de quartzo que ficam a 3600 metros sobre o nível do mar. Foram exploradas desde os tempos antigos em galerias subterrâneas.
Quando o poeta fala sobre a noite está se referindo à escuridão absoluta dos poços profundos, onde quartzo é cristalizado em vazios chamados drusas ou geodes. Talvez esses cristais sugeriram a Dávalos uma estrela comparável com as do céu na noite escura.
Também faz uma comparação entre Don Paredes, o mineiro que mói o ouro em um moinho de pedra indiano chamado maray, e Marcelino, que pisa uvas vermelhas para fazer vinho.
E o famoso refrão da zamba é tuda uma síntese da obra poética de Dávalos: ouro e vinho, minas e mineiros, vida e morte, lembrança e olvido (em outra das suas obras ele escreveu: “Venho do rouco tambor da lua / na memória do puro animal / sou uma lasca de terra que volta / para su escura raiz mineral”)
O Dr. Ricardo Alonso, doutor em ciências geológicas, em 2011 viajou especialmente a Corral Quemado, buscando as raízes da Zamba de los Mineros. “É um pequeno oásis nas áridas montanhas da província de Catamarca. O antigo armazém de Marcelino Rios é preservado, pintado de cor rosa, mas agora é casa de família. Don Marcelino está enterrado no primeiro vault no cemitério. Sua filha Eulália, que foi diretora de escola, morreu um par de anos atrás. As minas de Culampajá são abandonadas. A memória desses eventos está desaparecendo lentamente, mas a zamba está viva, vive profeticamente, como sonhou o nosso eminente poeta Jaime Dávalos, muito longe, e há muito tempo.”
Outro poema de Dávalos, “Temor del Sábado”, é normalmente utilizado como prólogo da zamba. Diz-se que o único manuscrito conhecido do poema foi salvo por outra filha de Marcelino Rios quando a antiga casa da família ficou desabitada.
A obra refere-se ao padrão que deve enfrentar mineiros necessitados de uma melhoria no salario, e aos trabalhadores confrontados com a usura.
Medo do Sábado
O padrão tem medo que fiquem embriagados com vinho os mineiros.
Ele sabe que entra-lhes como um fluxo de gritos no corpo.
Que enrolados nas cavernas da sangue vai encontrar-lhes o silêncio,
o escuro silêncio da pedra que come sombra dentro do túnel.
Que vai voltar roxa com bagualas (*) do fundo dos ossos
sua voz, batendo dura como um punho no tambor do peito.
Com pupilas abertas como talhos vai pedir um aumento
enquanto quebre girando entre as mãos a assa do chapéu.
E os olhos de poeira e pena triste caindo como manchas no chão.
É necessário esconder o vinho entre fechaduras, o vinho briguento,
é necessário esconder o vinho como um crime, o vinho mendigo.
Que não cai uma gota mais sobre a boca seca do mineiro,
onde o grito e coberto com coca, e com álcool a sede de amor e beijos.
É necessário esconder a primavera em sangue do vinho que descobre os segredos.
O padrão ordenou salva-lo, e tornou-se vinagre em confinamento.
À noite tem vómitos e elfos de lua dançando em seu corpo.
Os olhos do patrão vigiavam-lhe acima do sonho.
Os olhos do patrão tem dois anjos.
Dois anjos com insônia de medo.
(*) A baguala é um gênero da música popular originado no norte/oeste da Argentina pelas comunidades indianas que habitaram os Vales Calchaquíes.
Entre as muitas versões desta obra, escolhi a que registraram o riojano Prudencio “Chito” Zeballos acompanhado por o fenomenal violão de Luis Amaya. E também o poema “Temor del Sábado” na voz de seu autor (ambas versões têm ligeiras modificações em relação ao traduzido aqui)