Bob Dylan sings Frank Sinatra classics

Bob D

Bob Dylan se permite o infinito. Não existe horizonte que o faça pensar que após a linha imaginária vem o abismo. Sempre foi um transgressor no seu melhor estilo ou rebelde ou capaz de eletrificar o folk mais tradicional e despertar a ira dos mais conservadores. Provocador ou não, o bardo Dylan é incansável. Pode estar em seu repertório uma canção de Pete Seeger ou Paul Simon, pode estar ao lado de George Harrison e estar sozinho com seu violão e harmônica. Pode ser tão imprevisível quanto pode ser quase comum. Não por acaso alguns de seus discos não tiveram o carimbo da crítica como obra-prima. Na verdade, Mr. Robert Allen Zimmerman não precisa. Basta ter algum material circulando para esgotar logo em seguida. Seu nome mais que nunca é sol em todas as 24 horas do dia. Com ele, não há noite em nossas horas.
Agora, chega com um trabalho de covers, que para ele não são covers e sim o desenterramento das canções interpretadas por Frank Sinatra. Shadows in the night é bem mais que um registro de dez das canções de “The Voice”.

Capa Dilan

Gravar com orquestra, ajustar os músicos dela com os cinco da banda foi algo novo e dimensiona o que significa Dylan quando se propõe a fazer algo inesperado. Será que é tão inesperado assim? Dele, tudo se pode esperar. E sempre vem com ares de novo, inclusive o novo. Claro que Bob Dylan não é o primeiro a gravar standards da música americana. Bryan Ferry em 1999 incursionou por esse caminho com o belo As time goes by, aliás, o ex-Roxy também andou caminhando pelo universo de Dylan em Dylanesque, isso em 2007. Outro que pisou o mesmo chão dos clássicos foi Rod Stewart, que impulsionou mais uma vez sua carreira com a série The great american songbook muito bem aceita pelo público.
Porém, é com Bob Dylan que tudo acontece. É através dele que o sentido mais amplo de revolução musical nasce e cresce. Ele pode fazer isso. Ele é um incansável e fantástico instigador de mentes e ativa como ninguém os poros da sensibilidade. Basta escutar, por exemplo, “Autumn leaves”, “That Lucky old sun” ou “Stay witm me”. Mr. Zimmerman é o sol em seu estágio mais brilhante. A qualquer hora do dia.

http://www.bobdylan.com/us/news/new-album-shadows-night-out-feb-3

Foto Bob Dylan: William Claxton. Capa: capturada na Internet.

África, onde nasce a vida e a música

Tem longos anos, fins dos anos 90 do século passado – como isso soa estranho – que encontrei em uma loja de discos, que não existe mais, uma coletânea chamada The Music of Africa. Quinze faixas ou tracks distribuídas em setenta e sete minutos e dez segundos de pura emoção. Um disco que tão logo repousou no player, foi preenchendo todos os espaços do meu estúdio de trabalho, e fazendo com que eu deixasse de trabalhar naquela pouco mais de uma hora. E os nomes, quase todos, totalmente desconhecidos para mim. Creio que a maioria das pessoas do mundo também não os conheça. Está certo, há expressões que percorreram o mundo com a Anistia Internacional como o senegalês Youssou N´Dour ou a sul-africana Miriam Makeba, que já fizera sucesso no Brasil na década de sessenta com “Pata Pata”. Makeba faleceu em 2008.

Àfrica

O precioso encarte traz uma série de informações sobre os músicos que participam e ainda disponibiliza o vasto catálogo de músicas não apenas da África mas de todo o mundo, não escolhendo gênero ou ritmo. Passeia sobre a cultura com densidade e lança raízes ao o que talvez seja o desconhecimento sobre a cultura musical de várias partes do mundo, tal como é concebida por seus autores.
No álbum sobre a África, encontramos do Congo Mose ´Fan Fan´, de Zimbabwe Oliver Tuku Mtukudzi, da Algeria Hamid baroudi, da Ethiopia Mahmoud Ahmed ou Bana do Cabo Verde. Uma coleção fantástica, que não apenas nos introduz em um universo multifacetado de sons, percussões mas sobretudo de uma estado puro e seminal da vida. O tempo escoa rapidamente e o envolvimento com a sonoridade é imediata. A preservação de trabalhos como o que mantém viva as raízes do conhecimento serão sempre um alento para os dias de hoje.

http://www.youtube.com/watch?v=r2GBqKgwk8Y

http://www.youtube.com/watch?v=7ON_KSjqkbA

http://www.youtube.com/watch?v=k8wxmFcYKJI

Capa: reprodução Internet

Jessica Pratt, folk e autenticidade

Jessica

Onze canções nos deixam tranquilos e seguimos nossos caminhos. Assim me senti ao escutar o primeiro disco de Jessica Pratt. Não se trata de um trabalho inovador, de um trabalho em que todos os paradigmas se quebram e o novo renasce das cinzas. Não, absolutamente não. A californiana, cujo rótulo é cantora e compositora de indie folk faz tudo ao natural. Seu álbum de estreia, 2012, Jessica Pratt desfila seus erros e acertos com tanta autenticidade que é impossível não ficar cativado por sua voz doce e melodias igualmente suaves. O transita em torno de si é um mar de influências que se conjugam e ao mesmo tempo se contrapõem. O resultado é de uma certa originalidade em seu tom folk. O seu segundo cd On your pwn love again segue um caminho coerente com o seu espírito harmônico. Não há excessos em Jessica. Tudo vai se encaixando, vai tomando forma, e os desencontros acabam sendo encontros “criativos” na forma e na estética. Repito, sem ser inovador ou ousado no seu sentido mais amplo, Jessica Pratt é um bom motivo para começar o dia com sol, céu sem nuvens, e um caminhar mais leve.

http://www.youtube.com/watch?v=FF1lESEpYrc
http://www.youtube.com/watch?v=fnKZ_ZdXp6o

Capa: reprodução capturada na Internet.

Guillo Espel: do erudito ao folclore com ousadia e sensibilidade

Guillo

Minha relação com os países do Prata é por demais conhecida e todos também sabem que em minhas veias mais corre água do emblemático rio que sangue. Uruguai e Argentina estão em mim quem sabe muito mais que hoje Porto Alegre me habita. Sinto muita falta de Buenos Aires. Montevidéu tenho sido com mais frequência. Os amigos que tenho na capital portenha me deixam mais tentado a voltar o quanto antes e devo isso ao Marcelo Fébula, ao Gustavo Lopecito, ambos do site de turfe Los Pingos de Todos e também o Pablo Gallo, outro especialista em corridas de cavalos que conheci graças ao meu irmão Mário que está firme com o seu De Turfe Um Pouco. Todavia, muito antes, na primeira ida, em 1994, com Inês, a Buenos Aires ao contrário de ser uma viagem de lazer, foi mais uma viagem de trabalho. Jornalista sem gravador, bloco de anotações e caneta não é jornalista. E assim, a gravadora alternativa do Litto Nebbia, Melopea, foi a primeira a ser visitada. Bem recebido, além de um grande número de cds, assisti a alguns shows, vi e escutei Adriana Varela, então no Septeto Argentino do Litto, entrevistei-o, assim como a Lito Vitale, Leon Gieco e Eduardo Barone, então na EMI argentina, que me “regalou” com uma caixa chamada 10 Años de Vida – Uma Historia del Rock Nacional, contendo cds de Pescado Rabioso, La Máquina de Hacer Pájaros e a trilha do filme Rock Hasta que se ponga el Sol. E estava para sair uma com a obra completa do Sui Generis, mas essa não consegui. Para além do lançamento histórico, o box traz o primeiro grupo de Charly Garcia pós Sui Generis, o La Màquina de hacer Pájaros. Desses contatos, acabou em minhas mãos cds do grupo La Posta. Estava presente Guillo Espel. Escutei cada um deles, acho que dois ou três, não lembro bem, e havia um em especial que havia batido direto: De Homenajes y Leyendas. Marcante o trabalho de fusão ou de criação erudita sobre temas populares, folclóricos, de jazz – há presença brasileira de forma subliminar no disco. O La Posta era Guillo na guitarra, percussão e canto, Pablo Aguirre no piano e teclados e Jorge Alabarces nas flautas. Passado um ou dois anos, o retorno foi direto á gravadora e ao encontro de Guillo, de quem me tornei amigo. tenho quase toda a obra desse compositor ousado e criativo. Criterioso mas sem nenhum preconceito. O La Posta se desfez, Guillo continuou ou como Guillo Espel ou como Guillo Espel Cuarteto. E como cuarteto veio ao Brasil, tocou em Porto Alegre, e naquele dia, não pude assisti-lo, o que me deixa até hoje um imenso vazio. Porém, ele, generoso, me fez chegar Salir al ruedo. E então pude mergulhar mais uma vez em composições e arranjos que possuem não apenas a marca de músico incansável mas sobretudo de um músico aberto ao que há de melhor na música. Guillo é também um descobridor de talentos e não esconde que por ele vários projetos se desenvolvem em favor da música argentina. É natural encontrar em seus discos composições de Lilián Saba, uma pianista soberba, Manolo Juarez, outro pianista maiúsculo, Ariel Ramirez, Nora Sarmória, Antônio Carlos Jobim, e outros tantos consagrados e novos, sem distinção alguma.

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Tem se mostrado ao longo dos anos com trabalhos sólidos cujos alicerces o conduzem a um lugar especial entre os nomes da música latino-americana. participou ativamente do disco, o último, de Antônio Agri, Agri x2, que teve a participação do violinista Pablo Agri. Guillo orquestrou “SP de Nada” e Carambón”, compostas por Agri e executadas pela Orquestra Sinfônica Nacional da Lituânia. Com Fernanda Morella lançou em 2014 Once Mujeres, e antes havia gravado, por exemplo, Hojas de Hierba e De Raiz Folklórica onde reafirma sua disposição para criar e recriar com originalidade e ousadia. Possui, também, talento para a escrita e são de sua autoria dois livros importantes: Escuchar y escribir música popular e Aquel outro folklore. Vá ao seu site e descubra um tesouro musical riquíssimo: http://www.guilloespel.com.ar .

27 de Janeiro: não importa o ano, dia para não ser esquecido

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A exatidão das datas marca profundamente. Há setenta anos, em 1945, o Exército Vermelho com os seus soldados soviéticos abriram em definitivo os portões de Auschwitz, na Polônia, libertando sete mil prisioneiros sobreviventes do maior campo de extermínio da História. Naquele instante, não posso imaginar o que se passou pelas cabeças dessas pessoas. Impossível imaginar. Mas, reconstruíram suas vidas. São exemplo. São referências. São dignas de nossa admiração e são nossos alicerces seus exemplos de resistência e determinação. E são testemunhos que não permitem que jamais esqueçamos o que foi feito.
Dois anos trás, aqui perto, em Santa Maria, 242 jovens não viram o dia nascer. Dois anos em que os papéis da impunidade viajam para todos os lugares menos para o tribunal do júri para julgar os culpados pelo assassinato naquela madrugada. A impunidade consome a esperança. A impunidade engole a Justiça. A impunidade é mais que um reflexo, já é sinônimo de desesperança e medo. justiça, sim com letras minúsculas. Assim caminha o Brasil.
Neste dia, para jamais ser esquecido, possamos todos nós ainda contar com a solidariedade entre nós mesmos para quem sabe um dia a sociedade mudar. Mudar as instituições, todas elas, mudar a nós como pessoas dentro do convívio social. Possamos mais que nunca, não apenas reverenciar quem resistiu e quem nos deixou, possamos ter neles e por eles a força que precisamos para a mudança.

http://www.youtube.com/watch?v=-0HF2EFJIL8

Robin Gibb foi uma das vozes mais extraordinárias da cena pop a partir dos anos sessenta. Membro dos Bee Gees, com seus irmãos Barry e o gêmeo Maurice, gravou alguns discos solo. Alguns bem sucedidos, outros não. Compôs com seu filho RJ Gibb uma peça clássica: The Titanic Requiem. O título não é o mais apropriado para o momento, eis que também é o retrato fiel de uma tragédia do início do século passado. No entanto, há uma canção no repertório “Don´t cry alone” que possui grande sensibilidade e toca nossas almas.
Possamos também, através do artista que partiu em maio de 2012, nos permitir mais um momento de profunda reflexão e humanidade. Precisamos acreditar que podemos mudar o que precisa ser mudado.

Foto: Fernando Rozano

Silvio Rodriguez & Pablo Milanes: música para além da pele

Alguns discos habitam o meu imaginário. Para sempre. Ainda que mais tarde possa tê-los em mãos, continuam criando em mim muitos sentimentos. Silvio Rodriguez & Pablo Milanes En Vivo En Argentina é um deles. Gravado no Estádio de Obras Sanitárias em abril de 1984, três décadas para trás, nunca o encontrei no Brasil. Não sei sequer se foi lançado aqui. Amigos comuns no gosto pela música latino-americana me passaram um “cassete” de um dos discos – é um álbum duplo. E desde então iniciei a “caça” ao En Vivo dos cubanos. Tantas idas a Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia, Paraguai resultaram em fracasso. É bem verdade que descobri algumas pérolas da linguagem musical da nossa América, mas o disco dos dois dos maiores cantores cubanos nada feito. Confesso que havia desistido e me conformado com o cassete guardado e não transformado em cd pela tecnologia. Até que ano passado estive em Colônia de Sacramento, às margens do Prata, e vendo do outro lado, com certo exagero, Buenos Aires. Em Colônia, entrei em uma livraria em busca do livro Las cartas que no llegaron do Mauricio Rosencof, recomendado em artigo escrito em Zero Hora pela escritora Letícia Wierzchowski em outubro de 2011 e que guardara. Levei comigo uma cópia do texto, e ao entrar em uma livraria da pequena e belíssima cidade uruguaia, que um dia foi nossa, não apenas encontrei o livro como em um canto quase escondido estava o cd duplo dos filhos da ilha caribenha. Fiquei confuso e a alegria do encontro chegou com um silêncio que me fez tremer o corpo todo. Depois da euforia, comprei ambos e guardei na bagagem. Porto Alegre em breve estaria em meu cotidiano outra vez e deixei para ler e escutar em casa. Assim foi. Assim é. Do livro, houve desdobramentos. Letícia fez para a Record uma alentada e sensível tradução. Tenho os dois e em algum momento estarão em Chronosfer. O disco, foi para o Ipod e é companhia obrigatória. Não todos os dias, claro, mas está presente.

Cubanos

A Argentina recém havia saído de um dos seus períodos mais duros, de uma ditadura militar ferrenha, e o show dos cantores possui um grande sentido simbólico à época em que foi realizado e em especial aos momentos atuais, em que a aproximação entre Cuba e Estados Unidos quebram, enfim, o gelo de décadas e abre novas perspectivas em suas relações.
Os representantes da Nueva Trova Cubana, já conhecidos em nossas terras, desfilam um repertório maiúsculo e convidaram músicos argentinos a dividirem o palco. Junto com Eduardo Ramos, Frank Bejerano e Jorge Aragon, Leon Gieco, Piero, Victor Heredia, César Isella, Cuarteto Zupay e Antônio Tarragó Ros abraçaram cada canção com o sentimento de unidade latina. Estão presentes “Todavia Cantamos”, “Unicornio” “Ojala” “Yo pisare las calles nuevamente”, “Años” “Carito” “La vida y la libertad”, “Pobre del cantor” e “Cancion com todos”. Um disco sim para se guardar do lado esquerdo do peito. Um disco amigo. Um disco que lança a semente da esperança e da paz, que tanto necessitamos.

Yamandu Costa: maturidade e talento desde sempre

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O desde sempre lá do título parece ser exagero. Não é. Yamandu Costa é único desde sempre. O violinista gaúcho, que hoje sopra trinta e cinco velas, tem em sua corrente sanguínea a música. Filho da cantora Clari Marcon e do multi-instrumentista Algacir Costa, o convívio com as harmonias e sequências musicais foi desenvolvido com a mesma naturalidade que hoje tem ao se apresentar em qualquer palco do mundo. Se aos sete anos seus primeiros acordes nasciam, com o argentino Lúcio Yanel, com quem mais tarde gravou um disco antológico, tornou sua técnica mais exuberante. E aí, nessa, vamos chamar de primeira fase, suas influências estavam enraizadas, e ainda permanecem, no folclore do sul brasileiro e nos países do Prata. Depois, foram chegando Radamés Gnatalli, Baden Powell, Tom Jobim e Raphael Rabello, como anunciadores de uma nova forma e estética de tocar e compor. Da soma ou multiplicação de tantas e felizes influências, dedilhar o violão para o tango, o chamamé, o jazz, a MPB, a bossa nova, o samba, o chorinho e o que mais possa chegar é parte da vida de Yamandu. Sua discografia é fiel a sua história. Basta seguir a lista abaixo, de 2014 a 2000 para descobrir o quanto do seu talento se mescla a diferentes músicos e instrumentistas do Brasil, sem nenhuma espécie de concessão que não seja o talento e a criatividade. E a diversidade de seus trabalhos revelam toda as suas faces de violinista.
2014 – Bailongo
2013 – Continente
2010 – Lado B (com Dominguinhos)
2010 – Luz da Aurora (com Hamilton de Holanda)
2010 – Yamandú & Valter Silva
2008 – Mafuá
2007 – Lida
2007 – Yamandu + Dominguinhos
2007 – Ida e Volta
2006 – Tokyo Session
2005 – Música do Brasil Vol.I (DVD)
2005 – Yamandu Costa ao Vivo (DVD)
2005 – Brasileirinho
2004 – El Negro Del Blanco (com Paulo Moura)
2003 – Yamandu ao Vivo
2001 – Yamandu
2000 – Dois Tempos (com Lúcio Yanel)

Assim como a lista de premiações já é longa, suas apresentações pelo mundo adentro atestam o que desde sempre se soube: Yamandu Costa é único. Escutá-lo é uma experiência de vida.

http://www.youtube.com/watch?v=fddswrZWHR8
http://www.youtube.com/watch?v=T-mAzD1j0L0
http://www.youtube.com/watch?v=sV_T2gyvOsM
http://www.youtube.com/watch?v=XVYzEWjveF4
http://www.youtube.com/watch?v=vT1sMuGc4uE

Foto: http://www.jornalnopalco.com.br

Miniconto III: João Baptista

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Atrás das lentes dos óculos, João Baptista recebe pequenos fachos da luz do sol. Pelas frestas de vidro, seu mundo é como um fio de naylon, em cujas fibras se entranha o presente. Naqueles espaços medidos em milímetros, a vida não presta atenção nos movimentos das retinas, que o tempo acinzentou. Espera a chuva, ao pé da árvore, sem gestos. Apenas com as mãos entrelaçadas.
Levanta os olhos ao sentir os primeiros pingos baterem em seus cabelos. Encolhe seu corpo magro e pequeno em volta do cobertor, para proteger o que ainda resta da roupa. O latido incessante do cachorro ao seu lado é o único sinal de vida que pula a muralha do silêncio junto com o trovão perdendo a eterna corrida contra a luz do relâmpago.
O dia cede, aos poucos, sua luminosidade às nuvens. Os trapos de João Baptista, iluminados pela última luz, formam uma sombra até o meio-fio. A ausência do fogo é o segredo guardado pelos atalhos em que vive. Há muito sua voz está incinerada pela dispersão das palavras.
Estica os braços, vê o balançar dos pequenos lumes e então colhe a eletricidade do temporal. A vela úmida penetra na eternidade, deixando para trás a porta aberta.

Foto: Fernando Rozano

Alice Caymmi: DNA de Dorival presente

Alice

Mais uma do Luciano Alabarce: Alice Caymmi. Ao ler um dos seus artigos em Zero Hora, ele ao comentar sobre um disco que comprara em Belo Horizonte, será que foi em BH mesmo? não lembro, mas ao se referir sobre a coletânea citou nominalmente Alice Caymmi. Como um aviso, olha quem está chegando. Se não foi assim, foi algo muito perto disso. O suficiente para fazer com que não perdesse tempo e ter em mãos o primeiro álbum da neta de Dorival. Dez canções ganham corpo e densidade na voz, na interpretação, nos arranjos de Alice. E para não deixar dúvida alguma, apresenta-se também como autora. E duas parcerias com Paulo Cesar Pinheiro e uma versão ou cover, como muitos gostam, de Björk. Trata-se, na verdade, digamos, de um apanhado de tudo que fora feito, escutado, cantado durante a adolescência. E também desde os tempos de criança, afinal embalada no colo do pai Danilo Caymmi a música é uma extensão de sua vida. O disco é uma espécie de acerto entre as suas fases que passaram por Nirvana e Björk por exemplo. Um gosto pop na MPB, o violão, ousadias em arranjos e por aí seguiu sempre acompanhada por músicos de apoio muito mais que competentes, sensíveis às texturas de Alice.
Estilo próprio desde esse primeiro passo, uma espécie de preparação para os próximos, é impossível ficar impassível enquanto o player estiver ligado. Não é necessário escolher uma ou outra canção para destacar, todas têm a marca registrada do clã Caymmi, sinônimo do que há de melhor em nossa música. O segundo cd, Rainha dos Raios é muito mais que o próximo passo. É mais ousado, mais refinado e também mais experimental, mais popular, mais um pouco de tudo. Porém, fica a indicação, esse trabalho ainda não mergulhei o bastante para avançar em comentário, todavia pela amostra do primeiro, não é aposta, é certeza.

http://www.youtube.com/watch?v=7f6MDdCOqow
http://www.youtube.com/channel/UCDUtN0y6TH0pq8VCVDIScdg

Foto: Agência O Globo/Fabio Seixo

Agri, Zárate & Falasca Trío: tango de câmara

Agri

Pode parecer exagero. Afirmar de que o trio argentino faz tango com influência ou mesmo com todas as harmonias de câmara pode ser equívoco. Ao escutar o disco lançado no já quase distante 2002, Pablo Agri, violino, Cristian Zárate, piano e Daniel Falasca no “contrabajo” não deixam dúvida alguma. Donos de uma proposta atípica para os três instrumentos, eles trabalham um repertório variado que passa por algumas gerações do tango com extrema naturalidade. Composições de Astor Piazzolla, Enrique Cadicamo, Aníbal Troilo, Osvaldo Berlingieri, Antônio Agri, pai de Pablo e também violinista, ganham arranjos inspirados e soam sensíveis em suas tessituras que passam longe dos dramas que muitas das letras das composições possuem. O disco é instrumental, talvez resida neste aspecto o diferencial. O tango tem sido visitado por todas as gerações e não por acaso um fenômeno em todo o mundo também por gerações e gerações. Não por acaso também frequenta trilhas de filmes norte-americanos e europeus. As linhas mestras do trabalho do trio foge do convencional, e convém lembrar que Prepárense é um álbum em que o bandoneón, mola mestra do tango, está ausente em todas as canções. Essencial para o andamento do tango, Agri, Zárate & Falasca criaram ou reescreveram cada composição como se cada uma fosse nova. O efeito é um disco incomum para o gênero. E mais uma vez convém lembrar, o tango tem sido alvo de várias mesclas e leituras como o eletrônico do Gotan Project, o quê de flamenco de Diego Cigala, o rock de Andrés Calamaro – e aqui vale uma observação: Tinta Roja é um trabalho de muito fôlego e densidade – o folk de León Gieco, não com frequência, é verdade, e outras mais aproximações, umas com qualidade outras passando muito distante dela.
Prepárense é para ser escutado com calma, quem sabe com um tinto seco ou um café bem quente em dia de inverno daqueles em que nos recolhemos em nós mesmos e nos deixamos levar. Não sei se ainda pode-se encontrar em alguma “disqueria” de Buenos Aires, mas garimpá-las será sempre um prazer e se encontrar, um presente ganho. Vale a procura.

http://www.youtube.com/watch?v=r2FOamywF4w
http://www.dailymotion.com/…/x2fm8_pablo-agri-falasca-za..

Reprodução capturada na Internet. Arte da capa: M. Florência Ruiz Moreno