Uruguaio de nascimento, ganhou o mundo esse médico, cantor e compositor. Desde que seu Oscar por melhor música – “Al outro lado del río”, pelo filme Diários de motocicleta – sua vida foi pulando lugares: Buenos Aires, Madri, Porto Alegre, e mais uma infinidade de cidades. criativo, permaneceu algum tempo antes do sucesso cinematográfico entre as estantes de discos quase anônimo. Discos que já demonstravam sua universalidade e uma gama de influências para além do Prata e muitas vezes chegando à beira do Guaíba porto-alegrense. Não por acaso, um dos seus amigos e parceiros é Vitor Ramil e sua Estética do Frio. Andam juntos os dois. Os discos foram se sucedendo, todos com repercussão por onde passa e o seu caminho abre horizontes. La edad del cielo abraça um período em que a Virgin era a sua gravadora, e lá estavam (estão) VaiVen, Llueve, Frontera e Sea, e estão dezessete faixas em que não podemos escolher nenhuma: todas são magníficas. Voltar um pouco ao início de sua carreira é um exercício que permite observarmos o seu desenvolvimento com compositor, cantor, artista e cidadão do mundo. Um disco que se ouve com tranquilidade e para os que vivem ao sul do sul nesses dias de inverno com uma mate quente à mão ou um café.
O tango está em constante movimento. Renova-se. Arrepia os mais puristas. É um universo catalizador e por ele todas as vertentes da música passam. Inevitável. As fusões acontecem. Algumas, criativas. Outras, passam a lo largo. Todavia, o tango depois de Piazzolla nunca mais foi o mesmo de Gardel, sem com isso deixar Gardel para trás. Ambos convivem muito bem, obrigado. Há gêneros para todos os gostos e não por acaso o erudito se aproximou mais do tango, depois o folclore, o rock, a música popular. Por uma razão simples: o tango é a essência do popular. Sua raiz. A fala de muitos. Os sentimentos de tantos. As frustrações de amores perdidos de outros tantos. A sensualidade. A carne latejando. A tristeza do bandoneón. O universo do tango permite incursões verdadeiras ao seu interior e desvenda sua alma. Tabaré Leyton, jovem uruguaio, não deixa nenhuma dúvida ao lançar seu primeiro disco em 2010. La Factoría del Tango faz desse universo sua casa. Uma casa moderna. Olhares modernos. O novo respira. Traz para dentro o eletrotango, o candombe, a milonga, o tango canção. Celebra a mescla. O tango clássico com ritmos tão próprios do Uruguai e da Argentina e da canção contemporânea. E atravessa o Prata com tamanha naturalidade que também foi para além do Atlântico. Um primeiro disco que cativa. O tango continua mais vivo que nunca. Felizmente. Tabaré Leyton é um sopro que alenta quem gosta de tango.
A morte quando decide ser presente é devastadora. É daquelas certezas que nos aprisiona entre o medo e quando. Sem respostas, seguimos incertos estejamos aqui ou em qualquer lugar. Vamos em permanente exército lutando não contra ela, mas contra os outros flagelos da humanidade como o autoritarismo, a corrupção, a sonegação, a violência, a falta de saúde, o tráfico de drogas, o fundamentalismo, e outros milhões de combates diários. E a cada dia que passa nossos melhores combatentes, aqueles que nos ajudam a compreender a vida, suas diferenças, suas linhas e entrelinhas, seus contextos, suas perspectivas ou falta delas. Os que nos dão discernimento, consciência e dignidade estão nos deixando. Somos a cada instante menos e menores diante desse combate cotidiano, quando a morte colhe homens como Eduardo Galeano. Uma colheita indesejável. Galeano está na vida da América Latina não apenas pelo seu maiúsculo e contundente e fulminante Veias abertas da América Latina, desde os anos 70, anos em que o continente – e aqui me refiro a minha geração ainda adolescente – é ceifada por sucessivos golpes militares. O gosto amargo da censura, da repressão, da negação da vida por alguns para milhões. Foi através dele que a América passou a ser minha corrente sanguínea. Aqueles anos, que espero jamais retornem, ásperos e infames e injustos, tiveram no uruguaio, a doçura da esperança social, política e cultural. Ainda hoje tentam rasgar seu livro, desqualificando-o. Impossível. Eduardo Galeano é presente. Pude encontra-lo algumas vezes.
Em uma delas, as fotos atestam, no Fórum Social Mundial de 2005 em Porto Alegre. Junto com José Saramago lotaram o Auditório Araújo Vianna. Hipnotizaram a plateia com as palavras. Com as ideias. Com a consciência. Com o discernimento. Não ficaram na superfície, foram ao fundo. fomos juntos. Crescemos mais. E a tarde daquele mesmo dia, a entrevista coletiva. Repleta de jornalistas. A foto lá de cima mostra a distância que fiquei de Eduardo e de José. O gravador mal capturou as perguntas e respostas. Momento único. De amadurecimento. Muitos anos mais tarde, em Montevidéu, o encontrei no Expreso Pocitos, dos mais antigos e tradicional café da capital uruguaia. Estava sozinho, xícara de café á frente dos seus olhos. Uma espécie de solidão o acompanhava. Talvez estivesse esperando alguém, um amigo, outro café, um texto, uma taça de vinho. Não sei, nunca soube. Não levantei para conversar com ele. Também não sei a máquina fotográfica. Aquela solidão e aquele olhar falavam. Não poderia interromper. Olhei e sorri. E segui pela Juan Benito Blanco com passos lentos e em silêncio. Ele também falava com todos. O café já esfriava dentro nós quando a rambla de Pocitos mostrava o Rio da Prata tranquilo em suas águas. Ontem, ao ler sobre sua partida a dor chegou. As veias se abriram. As memórias de fogo se abrandaram. E o vazio aumentou tanto que não sei se ainda há espaço para mais perdas. Um homem que também amava o futebol, que instigou a imaginação não apenas dos adultos mas dos jovens, que nutriu esperanças e alimentou consciências havia partido. Do livro II da trilogia Memóriado Fogo – As caras e as máscaras, onde conta em pequenas histórias a história das nossas Américas, deixo um texto:
Promessa da América
O tigre azul romperá o mundo. Outra terra, a que não tem mal, a que não tem morte, vai nascer da aniquilação desta terra. Ela pede que seja assim. Pede a morte, pede o nascimento, esta terra velha e ofendida. Ela está cansadíssima e, de tanto chorar por dentro, ficou cega. Moribunda, atravessa os dias, lixo do tempo e, quando é noite inspira piedade às estrelas. Logo logo, o Pai Primeiro escutará as súplicas do mundo, terra querendo ser outra, e então soltará o tigre azul que dorme debaixo da sua rede. Esperando esse momento, os índios guaranis peregrinam pela terra condenada. – Vocêtem alguma coisa que dizer para nós, colibri? Dançam sem parar, cada vez mais leves, mais voadores, e cantam os cantos sagrados que celebram o próximo nascimento da outra terra. – Lançaraios, lança raios, colibri! Buscando o paraíso chegaram até as costas do mar e até o centro da América. Rodaram selvas e serras e rios, perseguindo a terra nova, que será fundada sem velhice nem doença nem nada que interrompa a incessante festa de viver. Os cantos anunciam que o milho crescerá por sua conta e as flechas voarão sozinhas na floresta; não serão necessários o castigo e o perdão, porque não haverá proibição nem culpa.
Meus olhos castanhos se acinzentaram úmidos quando a noite alcançou o meio do Universo. Muito obrigado por tudo, Eduardo.
“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz das margens que o comprimem”. A frase de Bertold Brecht não se aplica a Teresa Parodi e Ana Prada. A primeira, da margem argentina do Prata, a segunda, o lado uruguaio desse mesmo rio. Em comum, além de as margens aproximarem-nas, ambas são nascidas no interior dos seus países – Corrientes e Paysandu, Argentina e Uruguai. Trazem, cada uma, o cheiro e o sabor do folclore, do ainda novo para muitos folclore do interior do interior de suas terras. Uma, mais intérprete, Ana, outra, mais afiada na palavra, nas harmonias, Teresa. Os caminhos, embora ainda uma em seu lado do rio, vão se formando com experiências únicas. Parodi cantou como convidada no quinteto de Astor Piazzolla aos fins dos anos setenta. Musicou poemas, entre eles os de Jorge Luis Borges. Prada, aos poucos foi sendo descoberta como compositora. Antes, acompanhava o primo Daniel Drexler, irmão de Jorge. Formou um cuarteto voca, La Otra. Participou dos concertos de Simply Red e Buena Vista Social Club. Parodi, a convite de Mercedes Sosa, foi com León Gieco, Victor Heredia, Julia Zenkoe e Alejandro Lerner em 2000 a Israel. Fez trabalhos com Pablo Milanés e Antônio Tarragó Ros. Ana, com Rubén Rada.
Um dia, as margens não comprimiam as águas. Encontraram-se. Identificaram-se. Muito em comum entre as raízes do folclore e a música urbana de cada lado. As águas juntaram tudo isso. Integraram seus talentos, suas sensibilidades. Y que más é um disco notável em sua amplitude, seja ela regional ou para muito além não das margens mas das fronteiras, qualquer fronteira. Se misturam com naturalidade, vão compondo, tocando, cantando, escrevendo. E acompanhadas por músicos de tirar o fôlego. Como o disco. Y que más? Escutá-lo sem demora.
Atravessar as longas avenidas de Montevidéu é caminhar sob o fio da história. O olhar se perde em suas construções antigas e respiram um quê de moderno. Nada se exclui na capital uruguaia. De dentro de suas fronteiras, a cultura transpira por todos os lados. Não se encolhe ao se encontrar com o Rio da Prata. Ou se aventurar pelos campos imaginários do pampa, dos verdes e dos gauchos platinos se entrelaçando com as terras do Rio Grande. Não há distância que nos separe. Mas, para cá das águas platenses, a cultura ganha o mundo. E também sofreu com o rigor do autoritarismo comum durante décadas nos países da América Latina. No pequeno Uruguai nasceu um dos maiores nomes da literatura: Mario Benedetti. Maio de 2009 se tornou triste e silenciou as Américas. Sua morte, aos 88 anos, deixou uma lacuna que jamais será preenchida. Todos os grandes jornais escreveram o que tinham que escrever e prestaram homenagens sensíveis ao grande e sensível homem. Chronosfer mostra aos seus leitores um trabalho extraordinário feito com um dos mestres da música do vizinho oriental. Com Daniel Viglietti, produziu um livro e cd extraordinários. A dos vocês é a marca da liberdade, da rebeldia, da esperança, do futuro. A dos vocês é muito mais que um livro e um cd. É um universo infindável de possibilidades. Às vezes, Daniel canta primeiro, Mario recita depois. Outras vezes, Bendedetti recita e Viglietti canta. O repertório desliza por toda a nossa alma, acelera o coração, sensibiliza os ouvidos mais áridos. Impossível ficar impassível diante de A dos vocês. Viglietti é daqueles homens que resistiram, como Alfredo Zitarrosa, e o pessoal de Tacuarembó – de grande presença na cultura e na política uruguaias – a qualquer forma de opressão. É dele o clássico “A desalambrar”, tema eterno sobre a questão da terra, tema comum aos países latino-americanos. Canção que passou no início dos anos 70 quase incólume pelos censores brasileiros nos inesquecíveis discos América do Sol, produzido por Abílio Manoel.
Daniel esteve em Porto Alegre na Usina do Gasômetro em 01 de maio de 2003 em memorável apresentação e show de consciência humana.
Encontrei A dos vocês em um quiosque de Buenos Aires. Livro e uma fita cassete pendurados e a preço mais que popular. Anos mais tarde, em Montevidéu, o cd compensou em parte as longas caminhadas que fiz em busca da possibilidade de encontrar Mario Benedetti. Não consegui. Estava na Espanha e doente, me disseram. Conversei longamente com Washington Benavides, escritor, ex-parceiro de Zitarrosa, com Eduardo Darnauchans, com Ruben Rada, ouvi Laura Canoura, murgas, candombes e não encontrei Mario Benedetti. Agora, repassando, descubro uma apresentação de Mario a um disco em homenagem ao espanhol Joan Manuel Serrat.
Mario partiu, as Américas estão silenciosas, mas sua obra grita ao mundo o grito da liberdade, da solidariedade, do humanismo.
Daniel estará mais uma vez em Porto Alegre, amanhã, às 21h, no Theatro São Pedro dentro do Festival El Mapa de Todos. O evento integra artistas latinos e brasileiros durante cinco dias de shows, debates e encontros. Ponto para a integração latino-americana.