Kronos Quartet: Caravan

kronos quartet

Quarteto de Cordas maiúsculo. Começar com adjetivo é sempre um perigo. A linha que separa a afirmação do não corresponder à expectativa é tênue. Demasiada estreita por onde podem passar gostos distintos. E cada um com suas razões. O Kronos Quartet se ajusta com canções que se criam ao redor do mundo. Ou para dentro do mundo. Caravan vai passeando faixa por faixa por essa geografia: Iuguslávia (antes de ser fatiada), Portugal (Carlos Paredes), Índia, México, Turquia, Romênia, Hungria, Irã, Líbano e Argentina (Aníbal Troilo). Música étnica, música tradicional, folclore, tango (já haviam gravado Piazzolla), canções populares recheiam o disco com suavidade e emoção. Lançam para além da formação clássica convidados à arena das interpretações: Zakir Hussain, Taraf de Haidouks, Kayhan Kalhor, Ziya Tabassian, Ali Jihad Racy, Souhail Kaspar e Martyn Jones. Eles dão o gosto da mescla. Introduzem instrumentos como o acordeom, as tablas, címbalos, bateria e instrumentos da cultura africana. E esse gosto étnico conduz o quarteto por um caminho de aproximação e profundidade entre as culturas, regando-as sem concessões, criando texturas envolventes e revelam intimidade em suas nuances. Caravan não excede em absolutamente nada e os arranjos ultrapassam os limites que um quarteto de cordas comum ficaria confinado. Tudo aqui se transforma. Ganha uma vida que abre outras tantas. E se mostram por inteiro. Um disco completo. Maiúsculo. O adjetivo é toda a sua sensibilidade de sentir e passar adiante.

Turfe: a História também se conta com as derrotas

Rio Volga 1

Hoje, dia 26, mais um mês. Um ano e seis meses que o pai partiu. A saudade então passou a ser como uma contagem progressiva, aumenta a cada dia que passa. Mesmo quando por vezes se acomoda no leito dos pensamentos, está presente. Ergue-se sempre com a intensidade do látego quando necessário o seu uso para cruzar a linha de chegada. A vida se revela em toda a sua plenitude. Assim aprendemos a acreditar no possível e mesmo quando a mesma linha de chegada parece estar distante e não cruzar à frente. A trajetória de Mário Rossano é repleta de histórias. De muitas histórias vencedoras. E também de derrotas. Das mais inesperadas às mais prováveis. E é de uma delas, que para todo o sempre no mundo do turfe do Rio Grande do Sul, jamais será esquecida que está aqui hoje. E que o pai contava como “coisas de carreira”.

Breno Caldas era proprietário de um império da comunicação do sul: a Caldas Júnior, que editava entre outras publicações, o Correio do Povo. Também possuía um haras, o Haras do Arado. Apaixonado por cavalos de corrida, importava garanhões e fêmeas para criação e craques da tradicional blusa Rosa, ferraduras pretas, brilhavam nas pistas do velho, querido e saudoso pradinho dos Moinhos de Vento. Entre eles, um potro criado para ser exceção: Estensoro.

Estensoro Foto A

ESTENSORO – m/alazão, do RS, nascido em 22 de julho de 1955 – por ESTOC (FR) em PERFIDIA (FR), por NIÑO. 

Criação e propriedade: HARAS DO ARADO 

Estreia: 13 de abril de 1958, prova comum sobre 1200 metros – 2º para SENHORAÇO (castanho, Senhorial e Notória).

Turfe Record:

Apresentações: 14 (13 Moinhos de Vento e 1 na Gávea)

Vitórias: 12 (11 clássicas, incluindo a 2º Triplice Coroa Rio-Grandense)

Colocações: 1 (2º Moinhos de Vento)

Descolocado: 1 (14º Gávea em 2/8/59 Grande Prêmio Brasil para NARVICK).

Acima, o resumo da campanha do alazão do Arado, e na foto está seu jóquei oficial, Antônio Ricardo. Abaixo a História como aconteceu sua estreia, única derrota nas pistas gaúchas contada pelo seu proprietário e criador e a palavra do jóquei que o conduziu em sua única derrota.

No livro Breno Caldas – Meio século de Correio do Povo, depoimento a José Antônio Pinheiro Machado, L&PM Editores, 1987, reproduzimos a parte em que se refere a Estensoro:
PAqui nestas terras o senhor fez surgir um dos mais importantes campos de criação de cavalos de corrida do país, o Haras do Arado….
Breno Caldas – Eu comecei a criar cavalos em 1937…Sempre gostei de cavalos, montava quando jovem. Era cavaleiro, participava de competições hípicas. Quando vim para o Arado, construí cocheiras e resolvi começar a criar. O Haras do Arado teve alguns reprodutores de muita qualidade: Dark Warrior, ganhador do Derby Irlandês, pai do Ouroduplo e de outros ganhadores clássicos; Estoc, cavalo francês, invicto na Inglaterra, pai de craques como Estensoro, Estupenda e outros – o Estoc só deu bons cavalos: Elpenor, ganhador da taça de Ascot, pai de muitos cavalos clássicos, como a Corejada, o El Trovador (ganhador do Derby Carioca), o El Centauro (2º lugar do GP Brasil e no GP São Paulo) …
PO Estensoro foi o melhor de todos os cavalos que o senhor criou
Breno Caldas – Sem dúvida. O Estensoro, aqui, no tempo do prado do Moinhos de Vento e depois, no Cristal, onde ele chegou a correr, ganhou todas as provas possíveis, incluindo o GP Bento Gonçalves, o GP Protetora do Turfe, e foi Tríplice Coroado gaúcho. O Estensoro era filho de Estoc, um cavalo criado pelo Marcel Boussac – um dos mais importantes criadores do mundo – que eu importei da França na década de 50. Foi o melhor reprodutor que eu tive, uma verdadeira loteria que eu aceitei ao escolhê-lo entre vários outros. O Estoc tinha um problema de bambeira e produziu muito pouco, teve apenas treze filhos, mas todos ótimos cavalos, ganhadores clássicos. nenhum matungo. Além do Estensoro, o Estoc produziu outros muito bons: Estandarte, Ângela, Estrôncio…
P – O Estensoro só perdeu na estreia, ainda no prado dos Moinhos de Vento, para um cavalo chamado Senhoraço
Breno Caldas – …exato. Naquele dia, o jóquei oficial da nossa cocheira, o Antônio Ricardo, estava suspenso, e um outro jóquei, Mario Rossano, montou o Estensoro. Eu sempre proibi os jóqueis de baterem nos meus cavalos, especialmente nos potrinhos mais novos. Na largada, o Rossano deu um laçaço no Estensoro e ele, que não estava acostumado a apanhar, estranhou e ficou parado na partida. O páreo era em 1.100 metros e quando o Estensoro largou, os outros já iam uns 50 metros na frente. Saiu atrás e foi indo, foi indo, recuperando terreno e quase ganhou: acabou perdendo por focinho. Depois dessa estreia azarada, o Estensoro não perdeu mais aqui no Rio Grande do Sul. Quando ele foi para o Rio disputar o GP Brasil em 1959, um outro cavalo daqui, Lord Chanel, começou a ganhar todos os clássicos e houve quem dissesse que ele era melhor que Estensoro. Aí mandei o Estensoro de volta do Rio para cá, para disputar o GP Bento Gonçalves. Não deu outra: o Estensoro venceu em tempo recorde, deixando longe o coitado do Lord Chanel, que fez tanto esforço para acompanhá-lo que teve hemorragia…
Mário Rossano –  “Montei Estensoro, que perdeu comigo na estreia, mas foi estreia, mais tarde o doutor Breno Caldas escreveu que perdi porque bati no cavalo. Não bati, se tivesse batido ele teria vencido. Ficou essa marca de ter vencido todas as provas menos a que foi dirigido por mim. ” (Em depoimento realizado quando dos seus oitenta anos de vida, para o livro Dá-lhe Rossano, 2011, editado por Mário Rozano, e que por ter ficado longo não foi publicado. Está na íntegra, tal como foi degravado, sem as devidas correções para preservar o original, neste site.)
Estensoro nunca correu contra Lord Chanel, que foi monta oficial do Rossano em vários GPs, inclusive vencendo duas vezes o GP Protetora do Turfe, já no Hipódromo do Cristal, e o GP Bento Gonçalves de 1961, o  qual foi desclassificado em decisão polêmica e injusta da então Comissão de Corridas em favor de Argonaço.
Estensoro nunca disputou uma prova no Hipódromo do Cristal, tendo feito apenas um “passeio” de despedida das pistas, levantando os pavilhões do prado, sob a monta de Clóvis Dutra.
Mário Rossano montou e venceu provas clássicas com vários cavalos do Haras do Arado, entre eles Estupenda e Ângela.
Breno Caldas se equivocou em vários detalhes do seu depoimento, como a distância da prova de estreia de Estensoro que foi em 1.200 metros e não em 1.100 como afirmou, entre outras observações feitas a Lord Chanel.
Conversamos várias vezes sobre esta corrida. Antes o pai ficava chateado, triste, mas bem mais próximo de ele cruzar a sua linha de chegada já sorria. Um dia me disse que perder fazia parte e que não significava que tudo estava acabado. “Afinal – disse – todos os dias amanhece e tudo recomeça outra vez, inclusive as vitórias.”
Bento 1958 1º Estensoro 2º Dark Sauce
Na foto acima, o único GP Bento Gonçalves vencido por Estensoro, em 1958, o último disputado no Moinhos de Vento, secundado por outro dos craques do Haras do Arado, Dark Sauce, sob a monta de Mário Rossano, com a blusa preta, ferraduras rosa.
Agradecimento especial ao meu irmão Mário Rozano, que preserva como ninguém a memória do nosso pai.

Tabaré Leyton: La Factoría del Tango

tabare leyton

O tango está em constante movimento. Renova-se. Arrepia os mais puristas. É um universo catalizador e  por ele todas as vertentes da música passam. Inevitável. As fusões acontecem. Algumas, criativas. Outras, passam a lo largo. Todavia, o tango depois de Piazzolla nunca mais foi o mesmo de Gardel, sem com isso deixar Gardel para trás. Ambos convivem muito bem, obrigado. Há gêneros para todos os gostos e não por acaso o erudito se aproximou mais do tango, depois o folclore, o rock, a música popular. Por uma razão simples: o tango é a essência do popular. Sua raiz.  A fala de muitos. Os sentimentos de tantos. As frustrações de amores perdidos de outros tantos. A sensualidade. A carne latejando. A tristeza do bandoneón. O universo do tango permite incursões verdadeiras ao seu interior e desvenda sua alma. Tabaré Leyton, jovem uruguaio, não deixa nenhuma dúvida ao lançar seu primeiro disco em 2010. La Factoría del Tango faz desse universo sua casa. Uma casa moderna. Olhares modernos. O novo respira. Traz para dentro o eletrotango, o candombe, a milonga, o tango canção. Celebra a mescla. O tango clássico com ritmos tão próprios do Uruguai e da Argentina e da canção contemporânea. E atravessa o Prata com tamanha naturalidade que também foi para além do Atlântico. Um primeiro disco que cativa. O tango continua mais vivo que nunca. Felizmente. Tabaré Leyton é um sopro que alenta quem gosta de tango.

Turfe: O amor pelos cavalos de corrida

Rio Volga 1

Hoje, um ano e três meses de ausência. A saudade é o sentimento que jamais abandona. E é ela que mantém a memória acesa para o que os olhos descansam. Há muito, ainda, dentro de mim. Ao rever seu depoimento feito anos antes, quando dos seus 80 anos – partiu com 82 – está a passagem que fez com que ele amasse os cavalos. E deles e com eles construiu a sua vida, a sua família. Abaixo, uma pequena parte do que disse com o brilho aguado do amor que alicerçou tudo o que viveu.

Rossano e cavalos

“Meu pai tinha cavalos de carroças e gostava de cancha reta. Nascido no Uruguai e de lá veio com uma tropa de cavalos para vender ao Exército. Veio, casou e ficou. No verão, a família ia para o Cassino pois na época era muito difícil conseguir emprego, então comprou um pedaço de terra e começou a vender leite e carne aos veranistas. Nasci no Cassino por isso, a família trabalhando e em dezembro, verão nasci. Em 41 minha mãe faleceu, e meu pai foi trabalhar no Swift, e eu e meus irmãos fomos para o colégio dos padres salesianos. O destino é caprichoso, eu já era apaixonado por cavalos. Meu pai teve um acidente, ficou muito tempo no hospital. E nós internos no colégio. Em um domingo que reservo ao destino, os padres nos levaram a passear, naqueles antigos bondes abertos, nos levaram ao prado da Vila São Miguel. Eu fiquei transtornado, não sei a expressão que digo. Desde sete, oito anos montava os cavalos lá nas retas do Cassino, olhei os cavalos, os jóqueis fardados e era assim, o número um era blusa branca, o dois vermelha, o três azul, o quatro amarela….fiquei ainda mais apaixonado. No dia seguinte, no momento da missa disse ao meu irmão mais velho, Antônio, que iria fugir. A porta abriu e saí. Fui em direção ao prado pela estrada do Coester, que existe até hoje, levei o dia inteiro caminhando para chegar. Vi uma casarão, na Vila Matadouro, que era uma cocheira, estava um rapaz trabalhando e entrei e pedi para trabalhar. Pelo meu tamanho não fui aceito, mas chegou um castelhano, que era treinador, Darci Casser, e disse que pela casa e comida poderia ficar. Fiquei. Limpava as cocheiras, esse tipo de trabalho. Em 42, minha irmã, coisa do destino mesmo, casou com um ex-jóquei e então treinador, Dirceu Antunes, que me empurrou ainda mais para o prado. Meu pai estava saindo do hospital e quando soube que havia fugido me levou de volta ao Cassino e retornei ao colégio. No verão daquele ano, um senhor chamado Luis Pelhos, representante da Vinícola Garibaldi, de Pelotas, e era amigo do meu pai me levou para lá – Pelotas – para sair do prado e estudar. Mas, antes de ir, eu andava nas cocheiras do Dirceu e um dia montei uma égua chamada Madresilva e fui até onde eram realizados os treinos e meu cunhado não gostou do treinamento dela e mandou a égua de volta para a cocheira. Esse o detalhe é extraordinário, mandou de volta a égua e ela voltou, eu gritando e quando chegamos o portão estava fechado e ela parou e eu cai. Ela abriu e entrou. No dia seguinte eu já estava levando os cavalos para caminhar na água, pois em Rio Grande é muito comum fazer isso para curar os boletos, os joelhos.

Em Pelotas, ia estudar não lembro se no Gonzaga ou Pelotense. Era época da guerra, e atiravam muitas pedras nas casas dos alemães, a gurizada fazia isso e eu entrava junto. Certo domingo, o senhor Luís nos levou a passear e vai justamente à Tablada. Estava me seguindo o prado. Na segunda pela manhã a esposa desse senhor me pediu para levar a correspondência para ele no escritório e no meio do caminho voltei. Era fevereiro ou março, ainda não havia começado as aulas e o que fiz: como tinha algum dinheiro no bolso, peguei o saco de roupas, hoje é a mochila, e fui para ferroviária. Não tinha trem, mas passaria um carro-motor vindo de Bagé às oito da noite. Fiquei o dia inteiro esperando. Quando cheguei, minha irmã quase enlouqueceu. Três ou quatro dias depois, meu pai foi visitar o neto recém-nascido e me levou de volta ao Cassino. E me disse que se eu quisesse ficar com os cavalos que fosse para o Chuí, onde havia uma fazenda de uns amigos dele. Pensei em fugir de novo, mas não foi possível, não lembro bem, mas a minha irmã chorou e acabei ficando nas cocheiras do senhor Miguel Pereira na Vila São Miguel. Já tinha treze anos quando o Dirceu, conhecido como Morcilhão, levou cavalos para correr em Pelotas. Fiquei em Rio Grande, até que um dia chega um senhor e me leva para correr cancha-reta, tiro livre, lá no Senandes. E ganhei. Foi a primeira corrida e a primeira vitória, mas não vale, era apenas cancha-reta. Um jóquei, Ademar Cunha, o Chilinga, resolveu inscrever uma égua que trabalhava todos os dias, Alfaciana, o peso era 44 kg e não tinha jóquei com menos peso e a minha irmã disse “bota o Maruca”, como me chamavam, e tirei a matrícula de aprendiz de terceira. Foi a primeira vez que montei. Isso foi em 44, ainda com doze anos, não tinha bota e pedi ao Dinarte, colega de trabalho, também aprendiz que me emprestou depois. Tem uma fotografia dessa primeira vez que montei e eu estava sem as botas. Minha primeira corrida oficial como jóquei em Rio Grande. Tudo era muito difícil, longe.”

amor pelos cavalos 2 (fotografia)

Todos os dias 26 de cada mês, a coluna “Das cocheiras do Stud Mario Rossano” estará presente com uma passagem da vida de Mário Rossano, cuja presença e exemplo permanecem intactos.

Al Di Meola : The Great Passion

al di meola

Rica tapeçaria tecida com o fogo da paixão, The Great Passion é um mosaico de jazz, fusão, clássico, latinidade, tango e Oriente Médio. O violão e a guitarra de Al Di Meola criam a trilha romântica perfeita para a travessia de uma estrada, seja ela qual for e onde for. Apenas feche os olhos e se deixe levar. Possui cores próprias, elementos vivos onde as tardes de domingo, por exemplo, quando são invadidas pela saudade chega o tango “Soledad” e a expulsa ou se este mesmo dia quiser incendiar as horas é só escutar “Libertango”. Piazzolla em melhor estilo impossível. A escolher. “Mistèrio”, que abre o álbum, é bela, delicada, poderosa. Daquelas para ser guardada e retirada somente quando a alma assim o desejar. O disco todo é recheado de técnica, talento, virtuosismo e sensibilidade. Tem tudo. E o essencial: vida para ser vivida.

Aníbal Troilo, dos maiores do tango, por Marcelo Fébula

Recebi, a meu pedido, do amigo Marcelo Fébula, jornalista, músico e turfista, argentino um alentado e rico texto que passeia com toda a densidade que merece, a vida de um dos maiores tangueiros dos países do Prata: Aníbal Troilo, o Pichuco. Um artigo longo, que atravessa as gerações e para muito além da superfície de uma leitura, seu subtexto nos transporta pelas épocas portenhas e do tango. Ao fim, destaques para citações, vídeos e áudios recomendados. O Marcelo recebeu o apoio de Maria Irene Soares de Freitas na correção, revisão e tradução do texto original em espanhol. Ao Marcelo, que será colaborador, e Irene meu abraço de muito obrigado em especial pela amizade.

com o Polaco Goyeneche e Angel Cárdenas

Pichuco

Nasceu em 11 de julho de 1914 no Abasto, e passou sua infância entre os limites desse bairro, Almagro e Palermo. Morava no mesmo quarteirão onde nasceram dois grandes pianistas: o jazzista Enrique Mono Villegas e o folclorista Adolfo Abalos. Seus pais foram Felisa Bagnolo e Aníbal Carmelo Troilo, quem o apelidou “Pichuco”. Alguns estudiosos afirmam que pichuco é uma palavra da mesopotâmia argentina que significa negrito (pretinho), usado como um diminutivo de pichú. Mas em guaraní (a língua dos nativos das províncias de Corrientes e Misiones), negro (preto) é dito cambá, porém há outros que argumentam que a derivação correta é respeito da palavra do guaraní pichi (pequeno). Uma terceira teoria sugere que pichuco talvez venha do verbo hispanizado pichuquear, derivado do substantivo do idioma indiano quéchua pichusca (descolamento de flores do alfarrobeira).

     “Meu pai foi açougueiro e morreu quando eu tinha oito anos. Foi guitarrero e cantor, e me deixou a pena de não me lembrar a sua voz. (…) A sensação que eu tenho da certeza de sua morte foi a blusa preta com que minha mãe, dois dias depois, me enviou para a escola. (…) Antes de colocar o fueye em meus joelhos, coloquei o travesseiro da cama. Até que um dia fomos para um piquenique no que foi o antigo Hipódromo Nacional. Haviam trazido dois bandoneones e três guitarras. Quando os músicos saíram para comer, subi alguns degraus e peguei um bandoneón. Essa foi a primeira vez. (…) Aos dez anos, o fueye me atraiu tanto como uma bola de futebol. Jogaba como centrojás no equipe Regional Palermo. (…) Foi um pouco difícil convencer a la vieja, mas no final ela deu-me o gosto e tive meu primeiro bandoneón: dez pesos por mês em quatorze parcelas. E desde então eu nunca mais me afastei dele”.

Com este instrumento, comprado de “um ruso da rua Córdoba”, que desapareceu após o pagamento da quarta parcela, Aníbal Pichuco Troilo iria tocar música a maior parte de sua vida.

Gordinho, retacón e com ojos de ponja, estudava na escola Carlos Pellegrini e estava sempre atento aos fueyes que soavam nos locais do bairro. Já com seu próprio instrumento, depois de apenas seis meses de aulas com os modestos professores Juan Amendolaro e Alfredo De Franco, começou a tocar em um evento de caridade do cinema Petit Colón, fazendo sua primeira apresentação formal em 1925, aos 11 anos, no café Ferraro da rua Pueyrredón, esquina com Córdoba, perto do antigo Mercado do Abasto, hoje transformado em shopping. Mais tarde integrou uma orquestra de jovens senhoras (naquela época era comum que uma orquestra formada por mulheres tivesse um ou mais membros do sexo masculino vestidos com trajes), a orquestra de Eduardo Ferri, e aos 14 anos já tinha formado um quinteto para trabalhos no cinema Palace Medrano.

Em dezembro de 1930 é contratado por o sexteto Vardaro-Pugliese. Nesse tempo conhece a Alfredo Gobbi (filho), um de seus grandes amigos e parceiros de boêmia, e ao Ciriaco Ortiz, seu primeiro guia sobre fraseado musical e técnica do bandoneón. Depois vai sendo marcado ao fogo com mestres como Pedro Maffia ou Pedro Laurenz em uma peregrinação por várias orquestras. Durante 1931 aventurou-se brevemente no grupo de Juan Maglio Pacho, e em meados deste mesmo ano voltou a se reunir com Ortiz, dentro da orquestra “Los Provincianos” criada pelo selo Victor somente para gravações. Mais tarde integrou as formações de Julio De Caro (orquestra gigante de 1932), com Angel D’Agostino, Juan D’Arienzo, Alfredo Attadía, Luis Petrucelli, Típica Víctor, Típica Porteña, e faz parte do “Cuarteto del 900” com o acordeonista Feliciano Brunelli. A última parada antes de lançar seu próprio conjunto foi a grande orquestra do pianista e compositor Juan Carlos Cobián. Talvez inconscientemente, a esta altura já estava prenunciando o estilo que alguns anos mais tarde iria abalar as estruturas do tango. Nesta fase de sua carreira também vale a pena mencionar as suas participações nos filmes Los Tres Berretines em 1933, Radio Bar em 1936 e Muchachos de la Ciudad em 1937.

No referido filme Los Tres Berretines, o argumento gira em torno de três paixões dos porteños: tango, futebol e turfe. Troilo, ao longo de sua vida, foi um membro das três categorias. Gallina confesso, fã caracterizado e amigo de figuras do futebol como Adolfo Pedernera ou José Manuel El Charro Moreno, também era um visitante freqüente dos hipódromos. Lembro-me de uma anedota que me contou o mestre Carlos Figari (um dos pianistas da orquestra de Troilo): “Descobri o hipódromo com o Gordo, que me levou pela primeira vez. Naquela tarde, em uma corrida fizemos uma aposta sem o cavalo que montava Irineo Leguisamo. Quando estavam na reta final, vejo que Pichuco dá uma tapa na sua testa, balançando a cabeça. Perguntei: Qué acontece? Ele apontou para a pista. Ai, no lado da fora, um cavalo corria passando a todos os outros. Era o cavalo de Leguisamo.”

Reunindo alguns músicos da dissolvida orquestra de Ciriaco Ortiz, em 1º de Julho estreou na frente de seu conjunto: El Pulpo Orlando Goñi no piano; Juan Fassio (após Enrique Kicho Diaz) no baixo; Roberto Gianitelli, Juan Miguel Toto Rodriguez e ele mesmo na secção dos fueyes; Reynaldo Nichele, José Stilman y Pedro Sapochnik em violinos, e quem seria seu cantor emblemático: El Tano Francisco Fiorentino. Eles estrearam no cabaré Marabú de Buenos Aires, onde um par de sinais anunciaram:

“Hoy debut: Aníbal Troilo y su orquesta” – “Todo el mundo al Marabú / la boite de más alto rango / donde Pichuco y su orquesta / harán bailar buenos tangos.”

O conjunto, um octeto que tocava a la parrilla (sem ensaio estrito), tinha arranjos musicais simples e orientados para a dança, a principal fonte de subsistência das orquestras dessa época. Apesar da influência que ao final dos anos ‘30 irradiava o som dançante da orquestra de D’Arienzo, apoiado no trabalho de Orlando Goñi e Kicho Díaz começou a se gestar o embrião do que na próxima década seria definido como sonido troileano (o som característico de Aníbal Troilo).  E vale a pena fazer uma parada em um dos arquitetos dessa marca, pilar da orquestra: Orlando Goñi.

Taciturno, boémio, alguém pintou a sua figura dizendo que tinha olheiras de filme mudo. Considerado o criador do piano moderno no tango, tinha uma marcação esquerda singular, cheia de refinamentos, e uma grande habilidade para levar ao piano as frases que Pichuco cantava desde seu fueye. Longe de um idioma musical “quadrado”, havia se formado através de múltiplas experiências orquestrais e tendo como influência maior o pianista Francisco De Caro. Permaneceu seis anos na orquestra de Troilo, com a qual gravou 71 composições. Depois formou seu próprio grupo convocando verdadeiros talentos como Roberto Di Filippo ou Eduardo Rovira. Admirador do pianista de jazz Teddy Wilson, Goñi seria referência para grandes músicos do gênero, marcando com seu estilo e maneira de interpretação aos evolucionistas de seu tempo. Queimando rapidamente a sua vida boêmia, a morte chegou a visita-lo quando tinha apenas 30 anos. A história oficial diz que, sentindo-se muito doente, foi para a outra beira do Rio de la Plata e morreu na casa de um amigo uruguaio. Mas, alguns anos atrás, ouvi outra versão não confirmada em boca de um velho bandoneonista que viveu aqueles inesquecíveis anos ‘40: “Orlando Goñi … Grande músico! E que elegância tinha! Muito bum. Uma noite, após o desempenho, foi para um quarto de hotel com uma mina. Na manhã seguinte foi encontrado afogado na piscina no andar de baixo.”

A grega Ida Dudui Zita Kalacci foi vítima de um sequestro quando era pequena, e foi resgatada por sua avó Zafira, uma nativa de Rhodes. Troilo a conheceu quando trabalhava como balconista em uma boate de Buenos Aires. Era o início de uma relação tempestuosa que virou-se toda ternura até o fim, com casamento civil em 1938. O homem de boémia e noites eternas, capaz de sair e comprar um refrigerante com saco de recados e retornar em três dias… sem refrigerante, encontrou a companheira de sua vida no mesmo ano de sua chegada as gravações, quando gravou para o selo Odeón os tangos Comme il Faut de Eduardo El Tigre Arolas (um músico à frente do seu tempo) e Tinta Verde de Agustín Bardi. Duas composições que de alguma forma já prenunciavam um caminho de força expressiva destacando elementos melódicos. Envolto em conflitos com a empresa gravadora, não voltaria a gravar até 1941, para a etiqueta Víctor.

Uma grande inovação da orquestra de Troilo foi o papel do vocalista, que desde a morte de Gardel era apenas um mero cantor de refrões. A partir de Francisco Fiorentino, os cantores começaram a interpretar quase a totalidade das letras dos tangos, modalidade que depois adotaram as outras orquestras. Embora com uma voz fininha e rouca, o Gordo tinha uma entonação precisa e foi um verdadeiro mestre de cantores. Vários deles viveram o seu melhor tempo enquanto permaneceram na orquestra de Troilo, e outros usaram a experiência como excelente ponto de partida para suas carreiras solistas. Muitas das melhores vozes do gênero cantaram com Pichuco. Pela orquestra passaram Amadeo Mandarino (desde 1939 até 1941), Francisco Fiorentino (37-44), El Tano Alberto Marino (43-46), El Gallego Floreal Ruiz (44-48), o El Gaucho Edmundo Rivero (47-49), Aldo Calderón (48-50), Angel Cárdenas (56-61), El Polaco Roberto Goyeneche (56-64), Jorge Casal (50-55), Pablo Lozano (55-56), Carlos Olmedo (55-56), Raúl Berón (51-54), Roberto Rufino (59-65), Tito Reyes (64-74), Elba Berón (61-63), Nelly Vázquez (63-66), y Roberto Achával, sua última voz. Todos eles brilharam com Pichuco, que reconheceu ao cantor com um instrumento mais do conjunto: “Quando entra o cantor, a orquestra corpo a terra”, disse sempre ele, e embora isso em certa medida tenha originado alguns estrelatos e contribuído para o declínio da dança do tango, foi um princípio respeitado em toda a sua vida.

Em meados de 1939 a orquestra de Troilo fazia suas performances no café Germinal da Avenida Corrientes. Um garoto de 18 anos nascido na cidade costeira de Mar del Plata estava aí todas as tardes e, depois, de volta à pensão onde morava, estudava e traduzia em seu bandoneón tudo o que eu tinha ouvido no café, especialmente o trabalho do lendário Orlando Goñi ao piano. O garoto, chamado Astor Piazzolla, teve a grande oportunidade que ansiava quando em uma sexta-feira uma doença do bandoneonista Toto Rodriguez deixou a orquestra com uma lacuna preocupante frente das performances do fim de semana. Apresentado por seu amigo Hugo Baralis, violinista da orquestra, e sabendo o repertório de cor, deu uma espécie de exame e imediatamente se juntou ao grupo.

Nativo da turística Mar del Plata, mas criado em um bairro violento de Nueva York, Astor era um personagem que não se encaixa totalmente. Recordando aqueles dias, disse Hugo Baralis: ”Era um bicho raro nesse ambiente… Falava metade de inglês, um quarto de castelhano e outro quarto de lunfardo. Além disso, e para piorar a situação, havia tocado com Gardel, mas falava de Bach”. Vivia dentro dessa cultura da noite e cabarés, e compartilhava mesas com pessoas como Homero Manzi ou Enrique Cadícamo, mas amava a luz do dia e acordar cedo. Ficaba entediado com as conversações sobre minas (mulheres), burros (cavalos de corrida) o escolaso (apostas em geral), mas era capaz de entrar em uma mesa de pase inglês (jogo com dados por dinheiro) ou bater a qualquer jogando ao bilhar. Era muito jovem e estava em um lugar que para muitos outros músicos era um objetivo máximo onde poderiam ficar toda a sua vida, mas ele sempre tinha vontade de ir para a frente. Estudava harmonia e contraponto com o compositor de vanguarda Alberto Ginastera, quem falava-lhe da música como arte totalizadora e interessava-lhe na pintura e na literatura. Talentoso, sempre pensando em bagunças (como colocar fogos de artifício em lugares estratégicos dos cabarés), amante das piadas, por causa de seu hábito de andar de um lado para o outro e talvez também por seu olhar penetrante, foi apelidado O Gato por Troilo, que o amava e lhe permitiu fazer coisas que despertaram ciúme em outros músicos, como assumir o papel de líder e primeiro bandoneón quando ele não podia tocar, ou sentar-se ao piano quando Orlando Goñi estava bêbado demais para ficar de pé.

Piazzolla começou a fazer arranjos para a orquestra quando recebeu a permissão do Troilo, devido a uma indisposição do arranjador titular. Pichuco pediu-lhe fazer o que pudesse com Azabache, um candombe que tinham que tocar em um concurso da Rádio El Mundo. As escalas ascendentes nos violinos e as passagens de contraponto causaram rostos estranhos, mas depois o arranjo levou o primeiro prêmio. A partir daí, Troilo continuou permitindo-lhe fazer arranjos. Em eles Astor derramava seus estudos e canalizava toda a sua energia criativa, permanecendo inalteradas só as excelentes peças para piano de Orlando Goñi. Seus trabalhos, cada vez mais complexos e frequentemente censurados pela famosa borracha do Gordo, guardião de um estilo e do dinheiro que deixavam as danças, forçavam a estudar. E o estudo, normalmente não gosta o músico que está acostumado a tocar de ouvido.  Assim, embora apoiado por Goñi, Kicho Díaz e Hugo Baralis, que mesmo ajudaram com seus experimentos musicais, foi rejeitado pelos membros mais convencionais da orquestra, ganhando inimigos também fora dela. Alguns camaradas perguntavam-lhe se era louco ou se acreditava no Teatro Colón (o cenário máximo de música clássica na Argentina). Outros preferiram manchar suas folhas de estudos de música nos camarins, como vingança. E em o público, embora houvessem pessoas que com as novas orquestrações, ficassem mais próximas ao palco para ouvir com atenção, a maioria retirava-se entre assobios, jogavam coisas ao palco ou faziam paródia de passos de balé. Imerso em uma luta contra o conservadorismo, Astor respondeu de diferentes maneiras: tocando o bandoneón, discutindo, e às vezes também com socos. Depois de alguns anos seus estudos, seus gostos musicais ecléticos e suas novas preocupações culturais foram intensificando sua rejeição pelo mundo da noite e os cabarés, e incomodando cada vez mais à Troilo com seus incidentes e brigas.  “Gato, tu é um demônio”, costumava dizer-lhe, e até apelou a sua esposa: “Pare ao Astor, está entornando isto em uma orquestra sinfônica.” A paciência do Gordo foi se esgotando, mas de qualquer maneira, uma vez produzida a remoção de Piazzolla (que foi atrás de uma oferta de emprego dos já distantes da orquestra Fiorentino, Goñi e Baralis), Pichuco se sentiu ferido. Até a sua mãe assumiu responsabilidades em o assunto e chamou de ingrato ao Astor, vaticinando-lhe um futuro de arrependimento. Mas O Gato, reconhecendo o quanto ele tinha aprendido com Pichuco, levantando vôo, disse:. “Deixei a orquestra  porque queria ser eu mesmo (…) Quando andava com Troilo, tentei imitar muitas das suas coisas. Aprendi as armadilhas de tango, essas armadilhas intuitivas que me ajudaram mais tarde. Não é possível definir tecnicamente, são maneiras de tocar, sentimentos; é algo que vem de dentro, assim, sem voltas. Eu era no início um dos muitos bandoneones que tinha Troilo na orquestra, mas queria ser o primeiro e cheguei a ser. O Gordo confiava em mim.” Piazzolla atuou como músico na orquestra até 1944, mas continuou trabalhando como arranjador. Ao longo dos anos cultivou uma estranha relação de amor e ódio com Troilo, uma amizade marcada por lutas entre duas pessoas que, em última análise, queriam-se e admiravam-se um ao outro.

Os anos quarenta (para o tango a fase excepcional do ciclo evolutivo que começou no início do século), nasceu com dois eventos do ano 1935: a morte de Carlos Gardel e a entrada em cena da nova orquestra de Juan D’Arienzo. Ambos tiveram o poder de mover o estatismo em que o tango ficava, na encruzilhada de morrer com o ídolo ou seguir para frente. Felizmente triunfou a segunda opção, algo que o gênero não foi capaz de fazer, pelo menos em grande escala, décadas depois. D’Arienzo optou por renovar, mas olhando para trás. Revitalizou as velhas formas e apontou para a dança com um estilo monótono, rápido e eficaz. Sua orquestra foi musicalmente elementar, quase sempre tocando em uníssono com passagens excepcionais de piano ou violino solo, acrescentando a isto a sua negligência do rosto poético, com letras medíocres e de um humor duvidoso que seus fãs celebraram como parte do show desse home, que liderava a sua orquestra movendo-se como um espantalho e afundando o índice na barriga de seus cantores. A orquestra de Troilo tomou outro caminho, de acordo com a renovação que adoptaram muitos diretores dos anos ’40: menos intuição e mais estudo, preparação e qualidade técnica. Quando entram em cena os arranjos do mencionado Piazzolla e José Pepe Basso substitui ao Goñi no piano, a orquestra do Gordo torna-se mais estável e define completamente seu estilo, sua personalidade, seu próprio som, equidistante de outros vértices bem sucedidos do espectro do tango orquestral. Sendo uma das mais respeitadas, seguida por uma enorme multidão, compartilhou seu tempo com o pulso epiléptico pontilhado de mau gosto de D’Arienzo, a estética ordinária de Alfredo De Angelis em seu aspecto instrumental, o elegante tango de salão de Osvaldo Fresedo, o altivo e austero de Carlos Di Sarli, as diferentes linhas de outros evolucionistas decareanos (influenciados pelo estilo inaugurado por Julio de Caro), e uma centena de orquestras mais. Se ao início do século vinte a chamada “Guardia Vieja” destacou os nomes de Roberto Firpo e Eduardo Arolas, os anos do cabaré alvearista (presidência de Marcelo T. De Alvear) os de Julio De Caro e Osvaldo Fresedo, a década de ouro dos anos ‘40 do tango teria dos nomes dominantes da cena: Aníbal Troilo e Osvaldo Pugliese, outro grande mestre que abriu caminhos com seu estilo e cuja influência marcou decisivamente a muitos músicos do gênero.

Como diretor de orquestra, Pichuco começou a andar os anos ‘40 como decareano puro, com rigidez na distribuição de papéis dentro da orquestra, mas pouco a pouco foi se inclinando em direção a formas mais democráticas, com harmonias e melodias em qualquer linha de instrumentos, algo que poderia desenvolver por a alta qualidade dos músicos que sempre recrutou. Sua orquestra foi uma verdadeira planta de exportação de talentos. Ela foi composta por violinistas como Hugo Baralis, David Diaz, Alberto García, Nicolás Albero, Juan Alzina, Salvador Farace, Carlos Piccione, Antonio Agri, Fernando Suarez Paz, José Votti ou Carmelo Cavallaro; bandoneonistas como Astor Piazzolla, Eduardo Marino, Fernando Conte, Domingo Matio, Raúl Garello ou Ernesto Baffa; violistas como Simon Zlotnik ou Cayetano Giana; violoncelistas como Alfredo Citro, José Bragato ou Adriano Fanelli; contrabaixistas como Enrique Kicho Díaz ou Rafael Del Bagno; e pianistas que inevitavelmente viraram em diretores de orquestra: Orlando Goñi, José Pepe Basso, Carlos Figari, Osvaldo Manzi, Osvaldo Berlingieri e José Colángelo. Como O Gordo atribuía grande importância aos arranjos musicais, também contou com nomes de luxo nesse ponto: Héctor María Artola, Argentino Galván, Astor Piazzolla, Julián Plaza, Ismael Spitalnik, Oscar de la Fuente, Alberto Caracciolo, Eduardo Rovira, Emilio Balcarce, Héctor Stamponi e Raúl Garello. Todos eles sujeitos à célebre borracha do diretor. Diz a lenda que só esquivou a borracha o violinista Emilio Balcarce com o arranjo impecável de seu comovente tema La Bordona. Troilo, grande instrumentista, não era arranjador, mas sabia exatamente o que queria.

O Gordo participou ao longo de 41 anos de experiência em oito filmes. A os três já mencionados e devem ser adicionados El Tango vuelve a París (1948), Mi Noche Triste (1952, versão libre sobre a vida do dramaturgo, músico e poeta Pascual Contursi), Vida Nocturna (1955), Buenas Noches Buenos Aires (1964) y Esta es mi Argentina (1974). Em teatro, participou das obras El Patio de la Morocha (1953), Caramelos Surtidos (1960), Tango en el Odeón (1963), Troilo 69 (1969) y Simplemente Pichuco (1975). Destas, a que merece um longo parágrafo por seu significado na música popular, é El Patio de la Morocha, estreada no atual Teatro Alvear (nesse tempo chamado Enrique Santos Discépolo).

Foi um sucesso por 2 temporadas e 500 representações. Troilo, diretor musical, apresentou uma orquesta de 30 músicos com quatro cantores. A orquestração era de Astor Piazzolla e os textos de Cátulo Catunga Castillo. En uma das partes da obra, Pichuco e Roberto Grela representavam a Eduardo Arolas e um guitarrista anônimo dos tempos fundacionais do tango. Com fueye e guitarra interpretaram o tango La Cachila, de Arolas. Pela ovação recebida, tiveram que repetir o tema algumas vezes, já que era o único que tinham testado. Esta foi a origem do Quarteto Troilo-Grela, ponto de referência obrigatória em qualquer antologia do gênero, da música popular Argentina ou simplesmente da música.

O quarteto original era composto por Aníbal Troilo no bandoneón, Roberto Grela na guitarra, Edmundo Porteño Zaldívar no guitarrón y Enrique Kicho Díaz no contrabaixo. Este fenomenal conjunto gravou doze jóias entre junho de 1955 e setembro de 1956. Em 1962 Pichuco e Grela voltaram a se reunir e deixaram outras dez obras mais, acompanhados por Roberto Lainez na guitarra, Ernesto Báez no guitarrón y Eugenio Pro no contrabaixo.

A orquestra de Troilo, exceto um um pequeno período do ano ‘55, onde quase não gravou a não fez apresentações ao vivo, atravessou três décadas no mais alto nível graças ao trabalho de seu diretor e seus notáveis arranjadores, músicos e cantores.

Em 1942 adicionou a poderosa e lírica voz de El Tano Alberto Marino, e em 1944 contratou a El Gallego ou El Tata Floreal Ruiz, uma síntese de bom gosto, destituído de sensacionalismos ou exageros para cantar, do mesmo modo que uma pessoa conversa com um amigo tomando um café. Depois chagaram outras vozes originais: Raúl Berón, um magro que parecia nascido para se entrelaçar em o estilo de Troilo; El Feo ou El Gaucho Edmundo Rivero, grave, impondo, a grande voz de Sur ou La Última Curda; e El Polaco Roberto Goyeneche, esse grande cantor que tornou-se um personagem famoso em tempos em que já quase não tinha voz.

Em meados dos anos ‘60, a década de ouro do tango estava caminho de ser so uma lembrança, como os carnavais porteños. O rock e o boogie chegavam com força esmagadora de fora e, localmente, os protagonistas do programa de TV El Club del Clan, patrocinados pelas empresas gravadoras entravam no palco da música popular argentina como um elefante numa loja de porcelanas. Seu sucesso arrebatador foi tão inegável como o mau gosto e lamentável nível musical de muitos de seus membros. Felizmente e para equilibrar a balança, a década dos ‘60 mostrou um nível imbatível de qualidade e inovação na música folclórica, talvez como nunca mais viveu o país, graças criadores,  poetas e músicos inesquecíveis.

Nesse contexto, as orquestras de tango desapareciam atravessadas por os maus tempos econômicos, os bares fechavam ou já não tinham espaço exclusivo, e os expoentes do gênero sobreviviam na forma que poderiam. Além de Julio Sosa, uma espécie de lutador tanguero fora de tempo que atraia modestas multidões, do Quinteto Real, do Quarteto Federico-Grela e de orquestras como as de Osvaldo Pugliese ou Horacio Salgán, o tango como um todo não conseguiu reeditar a transformação que tinha ocorrido nos anos ‘40. A maioria dos tangueros escolheram o estatismo e sublinharam a seu grande perfil fascista e reacionário, considerando a os cultuadores do rock como inimigos e as propostas de renovação do tango como uma traição à causa. E assim ficaram… recusando-se a evolução, anacrônicos e com apliques vermelhos sobre as cabeças. Mas é claro que o tempo é implacável com todos. Alguns meninos do rock que então zombavam deles, hoje são tão ou mais ridículos que aqueles aos quais criticaram. É suficiente ouvir os shows de avivamento do velho conjunto de rock Los Gatos, um autêntico lixo.

Naqueles anos, enquanto Eduardo Rovira e Piazzolla inventavam outra história aprofundando o fosso com o tango tradicional, Pichuco manteve estoicamente sua orquestra, completamente renovada com a chegada do pianista Osvaldo Berlingieri, mas ao mesmo tempo foi se retirando para formatos musicais menores. Primeiro com seu parceiro Roberto Grela e depois fundando o Nuevo Cuarteto para tocar em bares como o famoso Caño 14. Com este conjunto, formado por ele no bandoneón, Ubaldo de Lío na guitarra, Rafael del Bagno no contrabaixo y Osvaldo Berlingieri no piano, em 1968 gravou onze tangos y uma milonga para o selo gravador Víctor. O Bandoneón Maior de Buenos Aires, uma lenda viva, no final daquela década deixou de reger a orquestra com o seu instrumento.

Em 1970 são gravados em um disco dois duetos de bandoneón Troilo-Piazzolla: El Motivo, tango de Juan Carlos Cobián, e Volver, de Gardel. Em 1971 Pichuco inaugurou a praça Homero Manzi, em comemoração do vigésimo aniversário da morte do grande poeta, seu parceiro em imortais criações de música e poesia, e o 24 de junho do mesmo ano sua orquesta registra a última de suas 449 gravações com a voz do Polaco Goyeneche. Embora seus problemas de saúde se multiplicaram, nesse registro ainda pulsam as luzes de grande instrumentista e diretor, já instalado de forma permanente no panteão dos grandes músicos argentinos. Adicionando registros em duetos e quartetos, existem um total de 485 gravações do Gordo editadas, embora presumivelmente há outras que nunca foram tornadas públicas.

Infelizmente, quase não há imagens de vídeo dos melhores momentos de Troilo e sua orquestra, algo que também acontece com outros grandes músicos do tango. Grande parte do material que pode ser encontrado no Youtube corresponde à última etapa, quando sua saúde estava devastada.

A peça teatral Simplemente Pichuco estreada o 3 de abril de 1975 no desaparecido teatro Odeon de Buenos Aires, onde Troilo se apresentava com quarteto e orquestra, não teve o impacto esperado. Alguém ligado ao espetáculo comentou neste tempo: “Vieram poucas pessoas e o Gordo no queria más Lola”. Y assim foi. Uma noite, após do desempenho no teatro, apareceram duas asinhas em suas costas, e partiu. Morreu o 18 de maio de 1975, em o Hospital Italiano, vítima de um acidente vascular cerebral e ataques cardíacos subseqüentes. A pior doença para um bandoneonista, osteoartrite, mais de cuarenta anos de noche, escabio, faso y merca (noite, álcool, cigarro e droga) passavam-lhe a última conta. Naqueles dias, um poeta disse: “O bandoneón caiu de suas mãos.” Ciente de sua morte, Astor Piazzolla compôs em sua honra a Suite Troileana, uma emoção profunda feita requiem dividido em quatro partes que referem às paixões do Gordo: Bandoneón, Zita, Whisky y Escolaso. Precisou um disco inteiro para testemunhar toda a admiração e carinho que sentia pela pessoa que definiu como “um monstro da intuição.”

¿Quem não apitou ou cantarolou uma composição do Dogor? Mesmo aqueles que zombam da velha estética do tango ouvem respeitosamente um tango do Troilo. Deixou um legado de 64 obras, quase todas inesquecíveis. Trabalhou com as melodias de forma excepcional, com poetas como Enrique Cadícamo, Catulo Castillo, José María Contursi, o Barba Homero Manzi, Homero Expósito, Jorge Luis Borges ou Ernesto Sábato, criando com eles obras como Toda Mi Vida (1941), Barrio de Tango (1942), Pa’ que Bailen los Muchachos (1942), Garúa (1943), María (1945) Romance de Barrio (1947), Sur (1948), Che, Bandoneón (1950 ), Uma Canción (1953), La Cantina (1954), La Última Curda (1956) Desencuentro (1962), etc. (tinha uma estreita amizade com Enrique Santos Discépolo, mas não registrou nehuma obra com ele). A morte de Homero Manzi em 1951 mergulhou-o em uma profunda depressão que durou mais de um ano. Em homenagem ao Homero escreveu um dos maiores tangos de todos os tempos: Responso (que gravou, mas sempre se recusou a tocar ao vivo). Manzi, o homem da disjuntiva “tornar-se um homem de letras ou fazer letras para os homens”, era seu grande amigo.

Em relação a obras instrumentais, entre outras e além do citado Responso, legou A Pedro Maffia, Milonguero Triste (dedicada ao violinista e diretor de orquestra Alfredo Gobbi), A La Guardia Nueva, La Trampera, etc.

Eu tinha dez anos quando o Gordo morreu. Escrevo com base no que eu poderia ler, por testemunhos de seus contemporâneos, pelo fato de ter muito ouvidas suas gravações desde criança, ter muito estudadas suas composições na pauta musical, e porque tive a sorte de conhecer pessoas próximas a ele. Lamento não tê-lo visto ao vivo, algo que consegui com outro grande mestre, Don Osvaldo Pugliese.

Uma pasta no meu computador está marcada “Troilo”. Aí tenho coisas que me fazem sentir bem. Fiore com Tristezas de la calle Corrientes e El Bulín de la calle Ayacucho: o Tano  Marino com Tres Amigos, Com mi Perro, Después y Garras; o Tata Floreal Ruiz com Naranjo en Flor, Romance de Barrio, Marioneta e Flor de Lino; os três misturados em duetos para cantar milongas como Cimarrón de Ausencia ou valsas como Soñar y Nada Más, o Feio Edmundo Rivero com La Última Curda e Sur; Jorge Casal com La Cantina; Raúl Berón com Discepolín e Che, Bandoneón; o Polaco Goyeneche com Un Boliche e La Violeta. Também tenho históricos temas instrumentais: Quejas de Bandoneón, La Bordona, Lo que Vendrá, A Mis Viejos, Danzarín, Responso. E, obviamente, todos os registros do Cuarteto Troilo-Grela (gastei velhos discos de vinil 78 rpm, muitos cassetes, e se o formato mp3 também pode ser gastado, acho que vou ter que construir uma nova pasta).

Eu não acredito em magia ou mistério para explicar a existência de um músico como ele, nem para explicar nada. Vamos deixar a necromancia para encontrar uma explicação quando acontece que alguém ganhar uma aposta quadrifeta com vinte cavalos debutantes no hipódromo. O Gordo cozinhou seu guisado com fogo lento, tocando muito, fazendo ligações com os grandes de sua época, para ao devido tempo ser todos eles e ninguém, porque havia chegado a ser ele mesmo. Cercou-se com os melhores quando teve que traduzir suas idéias musicais, sempre dentro de um equilíbrio, sem efeitos fáceis e com muito bom gosto. Criador inspirado e notável intérprete das obras de outros criadores, muitas obras transformaram-se em clássicos depois de passar por sua orquestra. Fez uma das maiores contribuições para a nossa música popular, e também deixou milhares de anedotas de bom homem, de amizades à prova de balas, e de noites sem fim.

E lá está, para sempre, ligeiramente inclinado, os olhos em algum abismo na frente, tocando seu bandoneón profundo e eterno. Obrigado, Gordo.

Palavras

 

Eu protestei-lhe: -Diga-me, por que você tem que trabalhar todas as noites com o quarteto, se nós não precisamos?

Ele disse: -E como tu pensa que vão comer Tito Reyes e seus seis filhos? Se eu não trabalho, ele não trabalha.

(Zita).

Não tenho medo de tristeza. Caminhamos juntos desde crianças.

 

-¿Está o Aníbal?

-É cicatrizando.

(Conversa telefónica entre Julián Centeya e Zita).

O conheci em um programa de TV quando tinha 12 anos. Eu cantava em bares, e nesses lugares quem mais grita é o quem mais colheita aplausos. Então, em um ensaio, quando comecei a cantar Barrio de Tango, Troilo me parou e disse: “Garoto, não grite; o tango não canta-se com o capital, canta-se com os juros”. (…) Troilo não sabia cantar, mas era mestre de canto, conhecia pouco da música mas era professor de música, e tocava pouco o bandoneón mas era mestre de bandoneonistas. Foi impressionante.

(Guillermo Fernández, cantor)

Um, não morre de uma vez, vai morrendo lentamente com cada amigo que desaparece, e assim chega um momento em que de Pichuco não queda nada.”

 

“-Tu te sente sozinho?

-Às vezes, especialmente quando estou cercado por muitas pessoas.

 

Ele tinha orelhas surdas para a calúnia e finas para a música.

(Edmundo Rivero, cantor e guitarrista)

Gostava de cozinhar. Quando fazia o molho para o macarrão, colocava “o pais” na panela: conhaque, uísque, fungos, tudo o que tinha a mão. Você comia macarrão com molho de tomate e saia de sua casa bêbado.

(Angel Cárdenas, cantor)

O Gordo tinha bom gosto até para chutar uma bola.

(Adolfo Pedernera, jogador de futebol)

Troilo é como um farol, como aquelas luzes que estão iluminando um caminho que, infelizmente, está ficando mais escuro e cheio de incertezas. Tinha muitos valores que são sintetizadas em um: a economia musical. Ele nos ensina que remover é mais importante do que abundar, graças a ele eu fiz amizade com a borracha. Com muito poucos recursos nos deixou uma arte profunda.

(Rodolfo Mederos, bandoneonista)

Pichuco fez que todos os seus cantores se tornaram em outro instrumento. Conseguiu que o cantor fosse um violino ou um piano mais na orquestra.

(Ben Molar, autor, compositor, produtor musical, promotor artístico)

Fui tocada quando ele disse:“Estou tão ruim, porque estou bem. Tenho um desejo de morrer que não posso mais.

(María Ester Gilio, a jornalista que fiz o último relatório com ele)

Alguém disse uma vez que eu deixei meu bairro. Quando? Mas quando! Se eu estou sempre chegando!

(Aníbal Troilo na poesia “Nocturno a mi barrio”)

-Como tu esta, Gordo?

-Bom.

-O que tu vai fazer?

-Não sei.

Você sabe o que você tem que fazer?

-Não.

-Nada.

(Diálogo entre Enrique Santos Discépolo e Troilo).

A orquestra ensaiava todos os dias às quatro da tarde no cabaré Tibidabo. E nas performances da noite tinha uma disciplina estética onde os músicos tocavam sem uma pontuação no púlpito. É que eles sabiam 120 obras de cor. O Gordo disse que era necessário distinguir os trabalhos do músico no palco: leitura e expressão. Se os músicos sabiam tudo de cor, o único trabalho que tinham que fazer era expressar.

(Horacio Ferrer, poeta)

Não há tango velho ou tango  novo. O tango é um só. Talvez a única diferença é em aqueles que fazem bem e os que fazem mal.

 

No cabaré Marabú, Troilo nos disse: “Vamos tocar suave, porque o público esta falando muito forte”. Ao fazer isso, a conversa geral começou a diminuir, até que ninguém falou. Só então começamos a tocar ao máximo.

(José Votti, violinista da orquestra)

 

-Está o Gordo?

-Chamá-lo mais tarde, que é nunca.

(Conversa telefónica entre Julián Centeya e Zita).

A as pessoas temos que contar-lhes, não cantar-lhes.

(Conselho para os cantores).

De Buenos Aires teria que dizer muitas coisas, e muitas não sei como dizer-lhes. Mas observe o seguinte: eu sou grato por ter nascido em Buenos Aires.

 

A rua é o melhor lugar de todos. Você aprende. O início aprendizagem, da educação, é em tua casa. Mas na rua você aprende a viver… Olha para mim, tudo o que eu aprendi, o pouco ou estranho que aprendi, aprendi na rua.

 

Eu tocava em pé, muito perto de sua mão direita. Nunca ouvi ele perder uma nota. Tinha um “touche” de grande artista. Chegava sempre, incrivelmente, aos ligados e os pianíssimos.

(José Votti, violinista da orquestra)

Há coisas que têm de ser fundamentais em um homem: a cordialidade e respeito. Respeito acima de tudo. Eu tinha 17 anos e trabalhava em um cabaré. Você sabe como chamava as mulheres dançarinas? Senhora. Chamava-lhes senhora.

 

Eu sei que as pessoas querem de mim. Não sei se sou um herói, não sou tão vaidoso a ponto de acreditar isso. Buenos Aires? Não, não sou Buenos Aires. Mas eu gostaria de ser a metade de um quarteirão de um bairro qualquer da minha cidade.

 

-¿Está Aníbal?

-Mas você não vê que as pálpebras são abaixadas?

(Diálogo através do intercomunicador entre Julián Centeya e Zita. Ela fez menção das “pálpebras”, as cortinas do apartamento onde moravam, na rua Paraná).

 

Há algumas composições que são minhas preferidas, as que mais quero: Sur e Responso. O tango Responso saiu uma noite em minha casa. Havia pessoas lá, jogando bacará e eu não sei… Senti como se eu não estava lá. Eram as 4 da manhã, e de repente fui para o meu quarto e comecei a tocar algumas notas, até que saiu Responso. Eu acho que foi a melhor homenagem que poderia dar ao Homero.

Quando voltei a Buenos Aires abri com meu conjunto eletrônico um belo lugar chamado La Ciudad. Zita veio uma noite e deu-me um dos bandoneones que teve o Gordo. Foi uma das mais belas emoções da minha vida.

(Astor Piazzolla. Por esse gesto Zita seria violentamente atacada por os meninos tradicionalistas, que acusaram a ela de louca e lembraram seu passado como dançarina de cabaré, entre outras sutilezas).

Se você ouve ao Troilo desde sua origem até o final, vê uma evolução acentuada, constante, em sua maneira de expressar música e de se relacionar com ela. Piazzolla, em vez disso, começou em quinta marcha e permaneceu sempre em quinta. (Hermenegildo Sábat, desenhista).

O tom das pessoas tristes é Re menor. Re, Fa, La. É o tom dos pobres, porque ele tem cor cinzenta. As pessoas que sofrem é tuda in Re menor.

 

Um dia terminamos de comer e ele foi com amigos no bar em frente. Tinham tomadas algumas garrafas, estavam alegres e Rufino começou a cantar. Chegou a cana e os levou a todos para a delegacia 13ª. Quando estavam no Departamento de Polícia, o Gordo perguntou ao Paco:

-Paco, a quem temos que retirar daqui?

-A ninguém. Os presos somos nós.

(Zita)

 

O sacrifício nunca é desistir do que se é. O verdadeiro sacrifício é manter o que se é.

 

Um dia estávamos no estádio Luna Park e as pessoas começaram a pedir-nos para tocar juntos. O Gato se aproximou, colocou um pé no lado da cadeira e disse-me: “canta”. Você não pode imaginar as coisas que fiz o fueye do Gato aqui no meu ouvido. Ninguém toca bandoneón como Piazzolla.

 

Eu não sou músico, sou tanguero. Você me imagina tocando a flauta?

 

Por que eu deveria ir para o Japão, se lá não conheço ninguém?

(Quando ele foi oferecido para ir para Tóquio, onde o tango teve muito sucesso nos anos setenta).

-Ernestito, Abre o armário e toma todas as camisas.

-Para que, Gordo? São tuas! Pare de brincar…

-E para que preciso delas? Não é frio lá acima.

(Diálogo com o bandoneonista Ernesto Baffa, em 1975, o ano da sua morte).

Dizem que eu fico animado com muita frequência, e que choro. Sim, é correto. Mas eu nunca faço isso por coisas sem importância.

 

Um dia fumos para a prisão com Julián, a tocar para os presos. Julián disse: “-Entre vocês que estão fora e nós que estamos dentro, vamos falar um pouco.” Os chorros choravam.

-Eu não entendo. Eles estavam fora?

-Sim, fora da lei.

(Diálogo com a jornalista Maria Esther Gilio)

 

Hoje vai tocar como Deus. Sempre toca como Deus quando anda perto do Diabo.

(Zita).

Troilo e Zita viveram muitos anos a poucos metros da intersecção de Avenida Corrientes e Paraná, em um apartamento com varanda e vista para a rua onde Pichuco estava muito bem e recevia a seus amigos. Mas uma vez eles se mudaram para outro prédio, apenas a dez quarteirões desse lugar que ele amava. Um dia Zita chegou ao novo apartamento e encontrou ao Gordo sentado na soleira de entrada e chorando. Preguntou-lhe o que tinha acontecido. Ele respondeu: Quero voltar para Buenos Aires.

(Horacio Ferrer)

-Gordo, tu vai estrear meu tango Naranjo en Flor?

-Pergunte-lhe ao Floreal Ruiz.

O poeta Homero Expósito então telefonou para o cantor.

-Vocês vão estrear o tango?

-Há 23 dias estamos com o Gordo, os dois sozinhos, buscando a sua forma definitiva.

¿Tu sabe quem foi Aníbal Troilo? Ele era tu, tocando o bandoneón.

(Astor Piazzolla em uma carta que ele escreveu para Carlos Gardel em 1978)

Alguns vídeos e áudios recomendados

La Cantina (vídeo). Tango de Aníbal Troilo e Cátulo Castillo.

Do filme “Vida Nocturna” (1955). Orquesta de Anibal Troilo com voz de Jorge Casal. O grande arranjo orquestral é de Astor Piazzolla

https://www.youtube.com/watch?v=UuO1j818vCU

La Trampera (vídeo). Milonga de Aníbal Troilo.

Do filme “Buenas Noches Buenos Aires” (1964). Toca o quarteto Troilo-Grela e dançam Beba Bidart e Tito Lusiardo. É a mesma cena que na peça teatral “El Patio de la Morocha” gerou o lendário quarteto.

https://www.youtube.com/watch?v=YLPrKYrcbsM

Nocturno a mi Barrio (vídeo). Música e letra de Aníbal Troilo.

Aníbal Troilo em recitado e bandoneón, Aníbal Arias em guitarra elétrica. Apresentação dentro de uma bem-sucedida novela da televisão argentina, em fines dos anos ‘60.

https://www.youtube.com/watch?v=JOFEGjl14Y8

El Motivo (áudio). Tango de Juan Carlos Cobián e

Duo de bandoneones Aníbal Troilo – Astor Piazzolla.

Palomita Blanca (áudio). Vals de Anselmo Aieta e Francisco García Jiménez.

Quarteto Troilo – Grela.

https://www.youtube.com/watch?v=bUEQ_Ju0YgI

A Pedro Maffia (áudio). Tango de Aníbal Troilo.

Quarteto Troilo – Grela.

https://www.youtube.com/watch?v=MOXUiikUy-E

Responso (áudio). Tango de Aníbal Troilo.

Orquestra de Aníbal Troilo

https://www.youtube.com/watch?v=ip8ppIK_4RE

La Bordona (áudio). Tango de Emilio Balcarce

Orquestra de Aníbal Troilo

https://www.youtube.com/watch?v=dunHfZczZPo

Pa’ que bailen los muchachos (áudio). Tango de Aníbal Troilo e Enrique Cadícamo

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Francisco Fiorentino.

https://www.youtube.com/watch?v=1HJTCpB3dNU

Toda mi vida (áudio). Tango de Aníbal Troilo e José María “Catunga” Contursi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Francisco Fiorentino.

https://www.youtube.com/watch?v=y2gg4FxpeZI

Romance de barrio (áudio). Vals de Aníbal Troilo e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Floreal Ruiz.

https://www.youtube.com/watch?v=uHAzJ4IZZM0

Marioneta (áudio). Tango de Juan José Guichandut e Armando Tagini.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Floreal Ruiz.

https://www.youtube.com/watch?v=LbLBwXIZNwk

Desvelo (áudio). Tango de Eduardo Bonessi e Enrique Cadícamo.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Floreal Ruiz.

https://www.youtube.com/watch?v=AlJkDmNzwqM

Milonga en rojo (áudio). Milonga de Lucio Demare, Roberto Fugazot e José González Castillo.

Orquestra de Aníbal Troilo com vozes de Floreal Ruiz e Alberto Marino.

https://www.youtube.com/watch?v=chzzRpdULOg

Después (áudio). Tango de Hugo Gutiérrez e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Alberto Marino

https://www.youtube.com/watch?v=BFXPHK1LjN0

Sur (áudio). Tango de Aníbal Troilo e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Edmundo Rivero.

https://www.youtube.com/watch?v=wz6VlrNcr_Y

Cafetín de Buenos Aires (áudio). Tango de Mariano Mores e Enrique Santos Discépolo.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Edmundo Rivero.

https://www.youtube.com/watch?v=AlB3XwNnQMo

Discepolín (áudio). Tango de Aníbal Troilo e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Raúl Berón.

https://www.youtube.com/watch?v=0tjIismlhwk

Un boliche (áudio). Tango de Carlos Acuña e Tito Cabano.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Roberto Goyeneche.

https://www.youtube.com/watch?v=CSHn8Qfq0Tk

Glossário de termos utilizados neste texto, em ordem alfabética.

(Correspondem ao linguagem espanhol que falamos em Argentina (argentinismos), ou a gíria chamada lunfardo).

A la parrilla. Maneira de fazer música sem ensaio nem leitura de pauta, com um monte de improvisação e conhecimento do gênero.

Bandoneón. O bandoneon é um instrumento de vento com línguas e fole, relativo a konzertina de Alemanha. Tem forma quadrada e um timbre muito particular. Seu nome original em alemão é bandonion. Foi concebido na Alemanha como instrumento de línguas soltas, inicialmente utilizado como órgão portátil para executar música religiosa. Quando chegou ao Rio de la Plata da mão de marinheiros e imigrantes, foi adotado por músicos da época e ajudou a formar o som original do tango, tornando-se um verdadeiro símbolo deste. É amplamente utilizado no Rio de la Plata, particularmente em Buenos Aires, Rosario e Uruguai, ligado principalmente ao tango e outros ritmos como chamarrita ou candombe. Também é muito popular na mesopotâmia argentina para tocar chamamé, e em outras províncias do centro e norte para tocar ritmos como chacarera, zamba e outros. O músico que toca o bandoneón recebe o nome de bandoneonista.

Berretín. Capricho, desejo teimoso.

Boliche: Bar

Bordona ou bordón. Corda grave

Burros. Cavalos de corrida. “Ir a los burros” pode ser traduzido como ir para o hipódromo.

Cafetín: Bar, pequeno café.

Cana. Polícia.

Centrojás. Jogador número 5 de um time de futebol, o médio-centro. Em inglês, center half.

Chorro. Ladrao.

Curda. Embriaguez. Também a pessoa bêbada é chamada “curda”.

Dogor. É a palavra gordo com suas sílabas invertidas. A gíria chamada lunfardo tem quase uma sub-gíria chamada “berre” ou “vesre”, que consiste em falar ao revés, trocando as sílabas das palavras.

Escabio. Álcool. Assim o verbo escabiar significa tomar bebidas com álcool.

Escolaso. Jogos de azar por dinheiro (loterias, cartas, dados, corridas de cavalos, etc).

Faso. Cigarro.

Fueye. Deformação da palavra fuelle (fole, em muitas partes da Argentina a letra “ll” é pronunciado como “y”). O bandoneón é popularmente chamado fueye.

Gallego. Popularmente chama-se “gallegos” a todos os espanholes, nativos ou não da província de Galicia.

Gallina. Galinha. Popularmente chama-se “galinhas” aos fãs do clube River Plate.

Guitarrero. Guitarrista popular, geralmente sem base acadêmica.

Guitarrón. É um violão de som mais grave que o violão tradicional. Seus cordas vão desde a sétima até a segunda (em violão tradicional vão desde sexta até primeira).

Merca. Droga em geral, embora pode referir a cocaína em particular. Merca é a primeira parte da palavra mercadería (mercadoria). Quem “toma merca” consome drogas.

Mesopotâmia argentina. Região geográfica da Argentina composta pelas províncias de Entre Rios, Corrientes e Misiones. Faz fronteira com o Uruguai, Brasil e Paraguai.

Mina. Mulher.

No queria más Lola.  Lola era o nome de uma bolacha que no início do século XX era parte da dieta dos hospitais. Assim, quando alguém estava perto da morte, dizia-se “Este não quer mais Lola”. Desde então, a frase se aplica a qualquer pessoa que não tem vontade de continuar fazendo alguma coisa, ou simplesmente continuar vivendo.

Ojos de ponja. Olhos de japonês. Ponja é a palavra Japón com suas sílabas invertidas (Ja-pon, Pon-ja). Popularmente, o japonês é chamado “ponja”.

Pase inglés. Jogo com dados por dinheiro, o famoso “Craps” ou “Seven Eleven” dos casinos, chamado Sevelé no Uruguai.

Porteño. Habitante da cidade de Buenos Aires (embora também são chamados assim os habitantes da cidade de Rosario, talvez porque a palavra é derivada de puerto (porto).

Pulpo. Polvo. Apelido comum para os pianistas.

Retacón. Homem gordo e de baixa estatura.

Rusos. Popularmente chama-se “rusos” aos judeus.

Tanguero. Pessoa ligada ao tango como criador, intérprete, dançarino ou simplesmente como fã do gênero.

Tano. Popularmente chama-se “tanos” aos italianos.

Vieja. Carinhosamente, chama-se vieja (velha) ou viejo (velho) aos pais. Hoje, os jovens chamam “vieja” a qualquer pessoa a quem eles apreciam muito, embora seja um homem. É como dizer que essa pessoa é tão boa quanto uma mãe.

Dúo Fébula Y Aravenis : as guitarras do Prata

Dúo FébulaYAravenis

A proximidade entre os rios Guaíba, do lado de cá, e do Prata, do lado de lá, nunca foi distância para mim. Sempre olho a Argentina e o Uruguai com a densidade de afeto que merecem. A história da minha vida tem toda essa gana que os platinos possuem, e minhas origens também têm suas vidas enraizadas por lá antes de se estabelecerem aqui. E tenho muitos amigos nesses lados todos. O Marcelo chegou pelo irmão, ambos “periodistas” de turfe, o roteiro dos grandes prêmios pela América adentro. E eu, apesar de pai jóquei e treinador, nunca fui um turfista no sentido vivo da palavra, embora sinta um amor infinito pelos cavalos. E o pampa me desafia, o imaginário incendeia e tudo o mais. Se não entrei nas pistas de corridas, caminho pela música, pela literatura, gostos dos cafés e do movimento dos porteños e orientais, gosto das livrarias que desvendam os mistérios da noite com suas portas abertas, assim como gosto do nosso mar, da nossa arquitetura, na nossa harmonia musical tão diversificada em cada região, dos nossos criadores das palavras. E ainda posso pôr nesse gostar, o Chile, cuja história me sensibiliza, cujo povo me habita. o Peru, com seus mistérios e fascínios pelo desconhecido alimentado pelos incas, quéchuas, aymaras. A Bolívia e toda a essência de uma América que se constrói por seu povo que mesmo sofrido tece suas cores de forç e determinação. Sou um latino-americano nascido no estado mais ao sul do país, e que procura cada vez mais o sul deste sul que me envolve. Assim, é a música que me aproxima de tantos movimentos nessa direção. Agora, por esses primeiros dias de inverno, o Marcelo está em Porto Alegre. Na bagagem, histórias e histórias. E muita música. Trouxe, via e-mail, o Dúo que faz com Walter Daniel Aravenis. E podemos entrar em um universo de cordas que vibram tangos, milongas, canções. Amigos e com pelo menos dez anos juntos um acompanhando o outro, vão criando a seu modo um repertório acústico com a beleza espontânea da vida. É para todos os que aqui chegam que ofereço os sensíveis violões de Marcelo e Aravenis em um espaço chamado Guitarra a La Carta, local onde se vende violões. Uma viagem pelo Prata.

https://www.youtube.com/watch?v=qBequz7GFsQ – aqui um apresentação em uma emissora de rádio. Para quem deseja conhecê-los um pouco mais.

Estrella Morente: Amar en Paz

estrellaAmarenPaz

Uma proposta muito simples: repertório de músicas brasileiras na voz de Estrella Morente e com o violão de Niño Josele tecendo as teias harmônicas. Uma reunião de flamenco com música popular brasileira não soa tão original tampouco tão frágil como possa parecer a alguns críticos. O sonho de Fernando Trueba, o idealizador e tudo o mais da obra, se uniu a outros já realizados por ele, tanto com Estrella quanto com Josele na homenagem a Bill Evans. Foi quando a cantora gravou Francis Hime e enfim pisou o chão do Brasil. A Espanha tem muito a ver com nossas terras. Sua influência em nossa cultura é definitiva, e ao longo dos anos tem-se mostrado fértil. E não apenas por aqui, se não em toda América. É comum encontrar Diego El Cigala, por exemplo, na Argentina, gravando tangos. E o flamenco é um gênero que envolve quem com ele se relaciona. É impossível ficar em silêncio absoluto. Amar em Paz não é, no entanto, um disco de flamenco. É música brasileira vertida para o espanhol sob o comando do talento de Estrella. Um apanhado musical que vai cortando os anos e trajetórias, começando por Antônio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes, Radamés Gnattali, Pixinguinha/João de Barro, Francis Hime/Chico Buarque, Milton Nascimento/Fernando Brant, Dolores Duran, Paulinho da Viola, Álvaro Nunes/Otavio de Sousa. Um leque de décadas e gêneros que os acordes do violão de Niño suaviza. Culturas e leituras que se encontram. Sem medo de se assumirem. Quem sabe mais desses encontros que um lê o outro através das águas dos oceanos não possa trazer como o título do álbum – Amar em Paz – justamente a paz que tanto desejamos entre todas as gentes do mundo. Seja esse disco neste post uma declaração de tolerância, de compreensão, de humanismo, de paz diante dos acontecimentos de ontem.

Turfe: Das cocheiras do Stud Mário Rossano: Mário Rossano e Irineo Leguisamo

Rio Volga 1

Hoje, mais um mês no ano completado desde a partida do meu pai. E, mais uma pequena passagem de sua vida como jóquei aqui.

Irineo Leguisamo foi um dos maiores, para muitos o maior, jóquei da América do Sul. Nascido no Uruguai, foi muito cedo para as pistas de Palermo, em Buenos Aires. Antes, o filho de Salto, onde iniciou sua carreira, montou cavalos no “prado” de Uruguaiana, em fins da década de 1910. Logo depois, cumpriu ainda jovem o percurso dos “prados” do interior uruguaio para chegar à Argentina já nos anos vinte e em 22 conquistar sua primeira vitória no tradicional hipódromo. Amigo de Carlos Gardel, que fez tango em sua homenagem, venceu todos os maiores grandes prêmios do continente. Até encerrar sua atividade aos setenta anos. Um exemplo e um mestre. Em novembro de 1962 esteve em Porto Alegre. Veio montar Vizcaíno na maior prova na pista de areia do Brasil, o GP Bento Gonçalves no Hipódromo do Cristal no Rio Grande do Sul. Venceu. Nos dias que antecederam a corrida, Mário Rossano e Irineo Leguisamo tornaram-se amigos. A imprensa local registrou.

Legui e Rossano

“Rossano e Legui tornaram-se grandes amigos. O jóquei local diz que inclusive mandará um presente ao jóquei uruguaio, em sua opinião um “fenômeno”. Mário Rossano foi cumprimentado por Irineo Leguisamo após sua vitória com Mar Báltico. “Foi precisa sua direção”, comentou El Maestro, que fez grande amizade com profissionais locais. Rossano comentava ontem que o temperamento jovial de Lequisamo surpreendeu a todos, inclusive distribuindo alguns “talaços amistosos”, mas um pouco fortes, em todos que passavam à sua frente, disse Mário Rossano. O jóquei rio-grandinho prometeu inclusive enviar uma barbatana ao piloto oriental.” Última Hora, 13 de novembro de 1962.

A sequência da página do livro Dá-lhe Rossano traz pequena nota, com fotografia, do Turf no Sul, da vitória elogiada por Leguisamo. 1962….o tempo corre demasiado em relação às minhas lembranças. Nem o mais veloz dos puro-sangues pode alcançar esse ano dentro de mim. O pai falava muito desse encontro, o fez um homem feliz. Perto de sua partida, conversamos sobre a amizade entre eles e perguntei se havia mandado o presente. A resposta foi típica do “Viejo” Rossano”: “Mas, é claro.” Lembro de Mar Báltico, o esperei em uma de suas vitórias, mas não lembro de Leguisamo em Porto Alegre. Ou apenas é uma passagem que vai se apagando em minha cansada memória. 1962! Eu era apenas um narrador de corridas de bolinhas de gude debaixo da mesa em nossa casa.

O José Alberto Souza é um grande amigo. Um memorialista (http://poetadasaguasdoces.blogspot.com). Sempre vem com alguma surpresa. Desta vez, me enviou um e-mail com esse tango da Ucrânia anexado, perguntando: “O que diria o velho Mário?”. Posso te dizer, José Alberto, ele escutaria, diria que não é Gardel, mas celebraria com uma taça de tinto, abrindo o seu sorriso, como se estivesse cruzando mais uma vez a linha de chegada de uma corrida.

Matéria do livro Dá-lhe Rossano – 25 anos sobre as patas dos cavalos, editado por Mário Rozano.

Miniconto XXX: Velez

Outro pequeno exercício de texto feito em sala de aula.

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As manhãs não amanheciam nos céus de Velez. Há muito os fogos brilhantes do sol caíram pelos trilhos e sumiram das vistas da cidade.
Chegaram os ventos. Levaram os varais para dentro dos olhares, para o fundo das retinas. Então, em mais uma manhã fria, doente, Velez enxugou os coágulos do sereno. Misturou carne, músculo e laço. E do impreciso das horas povoou imagens com uma paixão repentina.
O poste de luz, silencioso em sua luz apagada, desprendia-se como pó em sua curva de metal cansado e velho.
Velez morria e não deixava lembrança. Os trilhos não iam para lugar algum, e a chuva molhava os restos dos ossos.
Velez estava dentro da sombra e a sombra era o furacão.

Música: Astor Piazzolla – “Jorge Adiós”, da trilha sonora do filme Chove sobre Santiago.