Das cinzas, o sol; da madeira, as veias; dos ossos, a pele; da vida, o exílio; do Tempo, o tempo; no talho, o destino coagulado. Dentro, a noite adentra.
Foto: Chronosfer: Buenos Aires.
Não guarda descanso. Acumula silenciosa, ao longo dos invernos, as provisões para os dias sem sol. Guarda paciente o chamado escondido em algum porão da imagem. Não vive mais atenta, é despertada até ser esquecida. Como uma vertigem, troca de forma, penetra mais para dentro do dentro da chama até perder a luz. As distâncias e as idades desencontram-se em alguma parte do caminho e então tudo passa a ser sonho. Os sentidos são revistos, passados a limpo como um rito de passagem. Nesses dias, as estações balançam, encobrem suas ferrugens. O tempo não para e não há mais retorno. Os sinais chegam aos ossos, escorrem pela carne sentindo a ardência do sal. Os cascos continuam rebeldes. Os potros esticam a corda até encontrarem a liberdade. No pampa, a memória é uma morada abatida pelo vento da palavra e pelo tempo. Talvez nessa quase noite quebre o silêncio e assim como veio desapareça, levando as palavras coaguladas do destino que coube viver. Os campos não são mais os mesmos. Apenas histórias que passam de voz em voz através das memórias e de tênues lumes sobreviventes do que um dia foi e que sempre desejou ser realidade. (Dedicado à memória do meu pai, Mário Rossano.)
Foto: Chronosfer – Bento Gonçalves/RS
Não há horizonte além dos olhos de Luther. A única linha que o separa da vida é a harmônica deslizando em seus lábios. Na textura do sopro, entranha-se o sol e as nuvens de poeira nublam as retinas. A pele da memória anoitece mais cedo. Os ossos da casa se desprendem e os estalos o acompanham como uma percussão.
Foto: Chronosfer: Vila Muñoz – Montevidéu.
Signo dos nascidos entre os dias 17 de fevereiro e 19 de março. Tem como característica principal a musicalidade. Sensíveis e criativos, vivem em mundos repletos de acordes e notas musicais, embora através da música possam expressar seus sentimentos. Pouco resistente à critica, o Harmônico, quase desiste quando não recebe elogios. Gosta da solidão, por isso relaciona-se apenas o necessário. No amor, é receptivo, pois é afetivo ao extremo. Seu melhor dia é sábado, quando todos saem e ele vai tocar em algum lugar. Sua cor é o branco, mas olha o azul com brilho nos olhos. Tem ascendente em Guitarra, que é o seu oposto. Às vezes, entram em conflito, ainda mais quando Guitarra comete alguns solos. O sol é em Piano, o que o torna mais suave com os tecladistas, naturalmente. A lua em Flauta mantém o equilíbrio. Com os flautistas é capaz de fazer grandes parcerias, desde que eles não tenham como ascendentes Baixo ou Bateria. Seu número é o cinco. Gosta de animais, o cavalo é o seu preferido. Partitura é o seu sistema solar. Se for homem, afinidades com Flauta, Saxofone e Piano. Se for mulher, com Violoncelo e Viola.
Quando estudei Criação Literária, as aulas tinham muito do que chamávamos “à queima roupa”, ou seja, o professor pedia um texto com determinado assunto para ser escrito naquele momento. Um dos exercícios, é esse acima: usar um instrumento musical como signo do horóscopo e escrever suas caraterísticas. Foi um exercício e tanto.
I
No presente, o agora, dentro do círculo, é a saída.
II
Por ser larva, o voo é um ciclo. Por não ser larva, a palavra é o voo.
Foto: Chronosfer – Roma.
Havia esquecido as horas. O lugar exato está em algum lugar da memória. Ela já começara a anunciar sua despedida desde o dia em que o reflexo no espelho começou a ser diferente todas as manhãs. Muito tempo por aqui, dizia. A voz rouca, quase sem poder ser ouvida, ainda articula poucas palavras. O cansaço acompanha o olhar velho, ressequido, sem cor. O cheiro da terra molhada nos dias de chuva e os olhos no horizonte ao anoitecer, quando as raras lâmpadas da casa são acesas, encobrem a tristeza, o medo e as sombras dos noventa anos sobreviventes do sol. As retinas azuladas confessam os fragmentos reconstruídos, os mesmos que deixaram os fantasmas de Maria para trás. Os mesmos que trazem Ponta Delgada e a Ilha de São Miguel sem pressa, quase sem querer para este outro que ele é hoje. Este estranho que ainda vive somente com os músculos da dor e do vazio. Este outro que se perde dentro de um corpo cujo peso dos ossos mostra sua cota de vida.
Muito tempo por aqui – repete – muito tempo. Sorri o riso entristecido de quem não vivera todo o fogo do instinto. Mastiga o fumo e com o hálito quente volta ao silêncio. Seus passos se afastam da janela, quando, lenta, a noite começa seu turno diário e em um único tempo, vindas da galáxia, as estrelas surgem acima de sua cabeça. A madeira queima no fogão e ele, com seus pulsos fracos, toca a cama. A solidão é um sonho marcado em alguma página do livro que fica no chão.
As horas param pouco antes de o sol nascer.
Música: Milton Nascimento e Uakti: “Dança dos Meninos”
Aos setenta anos, San Vicente decide fechar os olhos. Entra na noite sem deixar as marcas dos passos. Está distante dos cheiros e dos pequenos fachos vividos. Havia se acostumado com o escuro. Desfaz a venda, os tons castanhos da íris se tornam estilhaços na memória. A segunda decisão vem com o horizonte: buscar o dentro, mergulhando na vida, para o início até o fim.
A lua recorta o vidro em listras que se alongam pelo piso de madeira. Olha as nuvens. É o começo. No dentro não existe tempo. E as vértebras das formas e das lembranças ganham sentido. O que havia perdido estava na luz das lâminas em cujos espelhos e reflexos se escondem pedaços densos do coração. Sobre o caminho, os trilhos gastos acomodam os velhos sapatos. A gaita de boca repousa no mesmo banco da estação de trem e as ruas continuam com suas luminárias à vela. A chama arde e desaparece ao amanhecer. Neste presente, descobre o futuro: o apagamento do passado. Vê a cerração chegar, cobrindo a terra e o campo. Deita sobre um dos trilhos, a cabeça envolta nos braços. Ali, tudo é urgente. O mundo de dentro se abre. A hora da escolha está próxima. A memória está em todos os lugares e em nenhum lugar. Levanta-se e entra na névoa avermelhada. Aos setenta anos, San Vicente sabe que a palavra é a única saída. Fecha os olhos sem se despedir. Há muito havia perdido o tempo. De dentro e de fora.
Música: Angus & Julia Stone – “Wherever You Are”
Outro pequeno exercício de texto feito em sala de aula.
As manhãs não amanheciam nos céus de Velez. Há muito os fogos brilhantes do sol caíram pelos trilhos e sumiram das vistas da cidade.
Chegaram os ventos. Levaram os varais para dentro dos olhares, para o fundo das retinas. Então, em mais uma manhã fria, doente, Velez enxugou os coágulos do sereno. Misturou carne, músculo e laço. E do impreciso das horas povoou imagens com uma paixão repentina.
O poste de luz, silencioso em sua luz apagada, desprendia-se como pó em sua curva de metal cansado e velho.
Velez morria e não deixava lembrança. Os trilhos não iam para lugar algum, e a chuva molhava os restos dos ossos.
Velez estava dentro da sombra e a sombra era o furacão.
Música: Astor Piazzolla – “Jorge Adiós”, da trilha sonora do filme Chove sobre Santiago.