Clube da Esquina: Os sonhos não envelhecem

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As tramas muitas vezes conspiram a favor. Domingo 4 de outubro, manhã fria, tarde de sol e o Parque da Redenção era uma mistura perfeita de natureza e seres humanos. O palco, perto do Monumento ao Expedicionário, reservava lugar para o homenageado do 2º Porto Alegre Jazz Festival: Milton Nascimento. Muitos dias depois, perdido entre os livros de uma livraria, encontro uma edição atualizada de Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina. A minha é de 1997. O show foi magnífico. Milton é Milton, não encontro outra definição e nem quero encontrar. Repertório curto, atravessou parte de sua carreira já não mais com a mesma agilidade física de mais jovem, todavia com a voz preenchendo todos os espaços e aveludando os sonhos. Depois de reencontrar o livro escrito pelo letrista e compositor Márcio Borges, decidi ler outra vez cada página da história que sempre habita o meu imaginário. E então o que era algo ainda fora do alcance do futuro, como não podia deixar de ser, hoje tem uma dimensão profunda e reflexiva. Ao traçar os caminhos do Clube, Márcio também se insere na realidade política do Brasil a partir de 1963 e logo após o fatídico golpe militar. E a travessia passa a ser outra. está ali a gênese dos rios que formaram um grande mar. Estão ali as influências de cada um, a bagagem de cada um, as criancices de beto Guedes e Lô Borges, a já maturidade de Milton, Wagner Tiso, Paulinho Braga, o próprio Márcio crescendo, o irmão mais velho Marilton na música desde cedo, e outros nomes se agrupando em torno dessas figuras emblemáticas: Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Nelson Ângelo, Toninho Horta, Flávio Venturini, Murilo Antunes, Elis Regina, Francis Hime, Chico Buarque, e uma infinidade de outros mais como Pat Metheny,Wayne Shorter e a gente se perde nesse universo. O livro de Márcio é um registro inestimável para a memória não apenas da nossa música brasileira se não que para compreender um pouco mais o país em que vivemos. As músicas “falam”. E quando menos esperamos, descobrimos que o mar gerou e ainda gera diversos rios, em processo inverso ao início. Somente Milton é capaz disso. Ao fim da leitura – quem sabe seja o início de várias outras leituras – o título, quase um clichê, se torna verdadeiro. Com todos os nossos avanços e recuos, a grande verdade é que “os sonhos nunca envelhecem”. ( o último vídeo tem a canção original do Clube, com a presença na plateia dos pais de Lô, Seu Salomão e Dona Maricota. emocionante.) A gente se vê por aí.

Vitor Ramil: Foi no mês que vem

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Vitor Ramil é um compositor exigente. É um compositor que não esgota nenhuma possibilidade. Ousa. Não tem medo. Realiza. E isso desde o seu primeiro disco, o que traz a bela e definitiva “Estrela, Estrela”. Desde então, cada disco, uma obra. Obra trabalhada à exaustão. Trabalho de ourives. E é nessa exaustão que marca encontro com a ousadia. Com o novo. No clássico Ramilonga suas milongas além do violão eram acompanhadas por cítara. Quem mais poderia fazer isso? Ou gravar Satolep Sambatown com o percussionista Marcos Suzano. Vitor é essa síntese recheada de conteúdo e marcas profundas.

Sabemos do seu rigor e o bom gosto estético. Esta reunião de antigas novidades onde está bem definida suas sensibilidade, delicadeza, seu humor sutil, ou quem sabe os seus olhares biográficos,  e comentários históricos e literários, reflexões filosóficas, pensares incomuns sobre o amor. Nada é excluído em sua criação. Um quê de melancolia, talvez essa coisa que acompanha os que vivem ao sul, a introspecção, o frio, o inverno, a lareira, a pampa imaginária. Foi no mês que vem é um apanhado sólido de sua carreira. Um concerto onde os convidados se revezam e se entrelaçam em suas harmonias também de forma harmoniosa e desfilam seus nomes: Jorge Drexler, Marcos Suzano, Carlos Moscardini, André Gomes, Carlos Badia, Fito Paez, Wagner Cunha, Pedro Aznar, Franco Luciani, Ian Ramil, Bella Stone, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Santiago Vazquez, Kàtia B, Kleiton & Kledir e outros mais. Um disco magnífico, belíssimo e sobretudo inspirador do criador da Estética do Frio. Vitor em toda a sua plenitude. Dessas obras que a gente ouve sem jamais esgotar a vontade de ouvir de novo.

Olivia “estrela da vida inteira” Hime: poesias de Manuel Bandeira

Olivia Hime

Alguns discos são como livros. Chegam e se instalam em nossa alma e cabeceira e nos acompanham por onde quer que nossos passos caminham. Estrela da Vida Inteira da Olivia Hime, sobre poemas de Manuel Bandeira é um desses. Assim como o seu Mar de Algodão, quando visita a obra de Dorival Caymmi. Em Estrela… a proposta se alicerça na estreita combinação entre a cantora, a poesia e compositores convidados. Alguns, com participação no disco, que é de 1986 e parece ter sido lançado poucas horas antes. Gilberto Gil, Francis Hime, Tom Jobim, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Moraes Moreira, Ivan Lins, Dorival Caymmi, Toninho Horta, Joyce, Radamés Gnatalli, Dori Caymmi e a própria Olivia fazem com que a poesia de Manuel Bandeira ganhe ainda mais cor e vida. O resultado é algo que passa a fazer parte de nosso interior. Impossível ficar impassível. Há um entrelaçamento sensível entre as combinações, encontros e nuances que somente essas linguagens são capazes de fazer. E fazem. E nós, mais que ouvintes, passamos a ser parte também. Se não somos estrelas, nossa luz ilumina a sensibilidade que nos habita e percorre desde nossa alma até a pele que o sol aquece. Um disco para se guardar para todo o sempre.

Mercedes Sosa: Deja la vida volar

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A América Latina e o mundo calaram em 04 de outubro de 2009. A tucumana Mercedes “La Negra” Sosa acabara de silenciar seu canto en vivo entre nós para sempre. Com ela, uma nova canção, assim como no Chile, brilhou junto com a utopia por um mundo melhor e mais justo não apenas nas Américas nas nos países chamados de periféricos. O folclore, a contestação, o exílio, a força do coletivo, o olhar para os novos e para o novo, a terra semeada, a vida produzindo vida formavam sua pele, seu coração, sua alma. Deja la vida volar é uma compilação de apresentações feitas pela Europa e em sua Argentina. Lançada após o seu primeiro ano de sua partida, o nome do disco é significado, pelo “voar”, pelo compositor da canção, Victor Jara, e pelo repertório, que abraça desde os mais antigos, inclusive o tango, até os mais jovens como Jorge Drexler, Fito Paez, a extraordinária Violeta Parra, o nosso eterno Milton Nascimento, o mágico Atahualpa Yupanqui, a magia de Maria Elena Walsh, os maravilhosos Ariel Ramirez e Felix luna – Misa Criola, para quem não lembra – e o revolucionário Piazzolla.Mercedes Sosa. Não é preciso escrever nem dizer mais nada.

Miniconto I : Don António

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Havia esquecido as horas. O lugar exato está em algum lugar da memória. Ela já começara a anunciar sua despedida desde o dia em que o reflexo no espelho começou a ser diferente todas as manhãs. Muito tempo por aqui, dizia. A voz rouca, quase sem poder ser ouvida, ainda articula poucas palavras. O cansaço acompanha o olhar velho, ressequido, sem cor. O cheiro da terra molhada nos dias de chuva e os olhos no horizonte ao anoitecer, quando as raras lâmpadas da casa são acesas, encobrem a tristeza, o medo e as sombras dos noventa anos sobreviventes do sol. As retinas azuladas confessam os fragmentos reconstruídos, os mesmos que deixaram os fantasmas de Maria para trás. Os mesmos que trazem Ponta Delgada e a Ilha de São Miguel sem pressa, quase sem querer para este outro que ele é hoje. Este estranho que ainda vive somente com os músculos da dor e do vazio. Este outro que se perde dentro de um corpo cujo peso dos ossos mostra sua cota de vida.

Muito tempo por aqui – repete – muito tempo. Sorri o riso entristecido de quem não vivera todo o fogo do instinto. Mastiga o fumo e com o hálito quente volta ao silêncio. Seus passos se afastam da janela, quando, lenta, a noite começa seu turno diário e em um único tempo, vindas da galáxia, as estrelas surgem acima de sua cabeça. A madeira queima no fogão e ele, com seus pulsos fracos, toca a cama. A solidão é um sonho marcado em alguma página do livro que fica no chão.

As horas param pouco antes de o sol nascer.

Música: Milton Nascimento e Uakti: “Dança dos Meninos”

Uakti Beatles

uakti

Quase quarenta anos de atividades, o Uakti desde 1978 desenvolve um criativo e instigante trabalho de pesquisa e de criação de instrumentos com os mais variados materiais possíveis e mesmo impossíveis em nossos pensamentos. Uma vez construídos, estudam a fundo sua concepção e exploram ao extremos suas sonoridades, as técnicas mais adequadas para enfim serem tocados. O resultado é um universo sonoro singular e deslumbrante. A música instrumental brasileira possui um grupo catalizador de harmonias e texturas próprias. Não por acaso trabalham desde sempre com Milton Nascimento, por exemplo, acompanhando-o ou gravando composições do carioca-mineiro. também estiveram com Philip Glass em Águas da Amazônia, disco fantástico. Em 2012, lançaram Uakti Beatles. Em geral, não é novidade gravar o cancioneiro dos Beatles, há tantas a escolha de cada um à disposição. No entanto, o diferente são os instrumentos. As assinaturas de Lennon, McCartney e Harrison ganharam novos timbres, novas tessituras, novo alento, que passa bem distante do sentimento de heresia às suas obras. Claro, em meio a tantos instrumentos insólitos, guitarra, piano e flautas convencionais aparecem aqui e ali em meio a tubos de pvc, cabaças, apitos e marimbas, sem desvirtuar a ideia original. Um repertório de 16 faixas que faz com o encantamento se multiplique e se instale de vez dentro de nós. Um sim à vida.

Mercedes Sosa, León Gieco, Eugénia Melo e Castro, Dulce Pontes, Joan Baez, Tom Jobim….

Hoje, apenas música. A que nos envolve. A que nos revela. A que nos transforma. A que nos lança através dos tempos. A que nos faz parar. A que nos faz pensar e discernir. A que nos comove. São tantas. Escolho as que nos aproximam latino-americanos e portugueses, como um caminho sem volta de integração e alma. Identidades que se reconhecem e andam pelas mãos da arte. Margens que se encontram.

Miniconto XXI: Coroas de Cristo

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Coroas de Cristo

Os vincos nas costas doíam. As mãos não alcançavam o dorso. Sentia crescer, entre a pele e a carne, finas camadas de coágulos. O corpo curvou-se, os ossos estalaram. Ao encontrar o chão, descobriu Coroas de Cristo. Os espinhos avermelhados recolheram-se, deixando tesa e acinzentada a retina envelhecida.

No outro lado da rua, as janelas fecharam-se, os vizinhos retornaram às suas tramas caseiras.
O inverno é apenas um dos quatro cantos do Tempo.

(Promessas do Sol – Milton Nascimento/Fernando Brant)

Fotos e montagem: Chronosfer

Perdemos Fernando Brant *1946+2015 e Ornette Coleman *1930+2015

Fernando Brant

A cada dia que vivemos dos dias que nos cabem viver fica mais próxima a linha do horizonte. E do quando iremos saber o que há depois dela. Ontem, dia demasiado agitado, sem noticiário às mãos, uma espécie de silêncio consentido me deixou distante desse cotidiano de notícias e outras realidades, e sonhos também. E foi também o primeiro dia em que o frio do inverno mostrou sua face aqui na extremidade sul do Brasil. Manhã de sábado não muito diferente de ontem, frio, uma suave névoa impedindo a passagem de alguns raios de sol, ruas desertas, café bem quente. Jornal aberto e em destaque a partida de Fernando Brant e Ornette Coleman. O mineiro de Caldas, ontem. O texano, na quinta-feira. Aquele silêncio que me acompanhou o dia passado se impõe hoje. Mesmo as palavras parecem se recusar a seguir o comando das teclas e gritam para não serem comprimidas no teclado e nascerem na tela branca. Dias atrás, em meio aos meus discos e escolhendo alguns peguei um duplo do Milton Nascimento sobre a sua trajetória, disco que agora não consigo achar, onde o coloquei? E lembrei que na década de 90 (acho que foi em 1993), o ano exato foge à mais simples lembrança minha, a Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre promoveu um seminário chamado “Com a palavra a letra”. Encontros, debates, oficinas, shows com Ronaldo Bastos, José Miguel Wisnik, Wally Salomão, Ná Ozzeti, acho que Alice Ruiz também veio, enfim, uma infinidade de nomes, e de artistas e compositores do Rio Grande do Sul, com os de fora,
fizeram um seminário maiúsculo. Fernando Brant estava entre eles. Cobri o evento como repórter da revista Porto&Vírgula. Foi muito complicado separar o profissional dos meus ídolos. E o Clube da Esquina é, para mim, o maior de todos os nossos movimentos, claro que reconhecendo Bossa Nova, maravilhosa, Jovem Guarda, cumpriu extraordinário papel em um período complicado de nossa história, Tropicália, sem muitas palavras, Tropicália é Tropicália, o Movimento Artístico Universitário, de onde vieram grandes compositores, o Pessoal do Ceará, de São Paulo-Paraná nos anos 80, enfim, uma infinidade de movimentos que mexeram com todos nós para melhor. Conversei com Fernando uns quarenta minutos, dividindo esse tempo com outro colega, e tudo fluiu com espantosa naturalidade. Ele, contando suas letras, sua forma de escrever, de compor, de não falar sobre o trabalhos dos colegas, sempre disposto, ético, íntegro. Quarenta minutos que chegam velozes à minha memória em forma de saudade. Saudade pelo tudo e pelo todo que fez e ainda fará por todos através de suas letras e músicas cuja riqueza não há como medir. Nada será como antes, diria Ronaldo Bastos. Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, diz o mineiro que nos deixou. Assim será, Fernando.

Foto: colhida do site http://www.cantosagradodaterra.blogspot.com

* Sobre Ornette Coleman, amanhã um texto.