Miniconto: Memória – Música: Victor Heredia, Nito Mestre & Leon Gieco

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Não guarda descanso. Acumula silenciosa, ao longo dos invernos, as provisões para os dias sem  sol. Guarda paciente o chamado escondido em algum porão da imagem. Não vive mais atenta, é despertada até ser esquecida. Como uma vertigem, troca de forma, penetra mais para dentro do dentro da chama até perder a luz. As distâncias e as idades desencontram-se em alguma parte do caminho e então tudo passa a ser sonho. Os sentidos são revistos, passados a limpo como um rito de passagem. Nesses dias, as estações balançam, encobrem suas ferrugens. O tempo não para e não há mais retorno. Os sinais chegam aos ossos, escorrem pela carne sentindo a ardência do sal. Os cascos continuam rebeldes. Os potros esticam a corda até encontrarem a liberdade. No pampa, a memória é uma morada abatida pelo vento da palavra e pelo tempo. Talvez nessa quase noite quebre o silêncio e assim como veio desapareça, levando as palavras coaguladas do destino que coube viver. Os campos não são mais os mesmos. Apenas histórias que passam de voz em voz através das memórias e de tênues lumes sobreviventes do que um dia foi e que sempre desejou ser realidade. (Dedicado à memória do meu pai, Mário Rossano.)

 

Foto: Chronosfer – Bento Gonçalves/RS

Miniconto VII: San Vicente

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Aos setenta anos, San Vicente decide fechar os olhos. Entra na noite sem deixar as marcas dos passos. Está distante dos cheiros e dos pequenos fachos vividos. Havia se acostumado com o escuro. Desfaz a venda, os tons castanhos da íris se tornam estilhaços na memória. A segunda decisão vem com o horizonte: buscar o dentro, mergulhando na vida, para o início até o fim.

A lua recorta o vidro em listras que se alongam pelo piso de madeira. Olha as nuvens. É o começo. No dentro não existe tempo. E as vértebras das formas e das lembranças ganham sentido. O que havia perdido estava na luz das lâminas em cujos espelhos e reflexos se escondem pedaços densos do coração. Sobre o caminho, os trilhos gastos acomodam os velhos sapatos. A gaita de boca repousa no mesmo banco da estação de trem e as ruas continuam com suas luminárias à vela. A chama arde e desaparece ao amanhecer. Neste presente, descobre o futuro: o apagamento do passado. Vê a cerração chegar, cobrindo a terra e o campo. Deita sobre um dos trilhos, a cabeça envolta nos braços. Ali, tudo é urgente. O mundo de dentro se abre. A hora da escolha está próxima. A memória está em todos os lugares e em nenhum lugar. Levanta-se e entra na névoa avermelhada. Aos setenta anos, San Vicente sabe que a palavra é a única saída. Fecha os olhos sem se despedir. Há muito havia perdido o tempo. De dentro e de fora.

Música: Angus & Julia Stone – “Wherever You Are”

Poema Breve e Inacabado II

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entranha-se
apenas entranha-se na vida
com seus traços invisíveis
sem ser reconhecido onde a carne arde

entranha-se
apenas entranha-se na morte
com seus traços visíveis
pele roxa em uma gaveta numerada

não deixou testamento
não deixou memória
o esquecimento é a única lembrança

Foto: Fernando Rozano
Música: Thurston Moore – “Benediction”