O jovem mestre Carlos Roldán, guitarra de alto nível, por Marcelo Fébula.

O fraterno amigo porteño Marcelo Fébula, jornalista e músico, todo o mês chega em nosso pequeno cais e deixa preciosidades da música argentina. Hoje. aporta por aqui Carlos Roldán. Ouvir sua “guitarra” é uma viagem para o interior de nossa alma. Gracias, Marcelo.

carlos roldan

Guitarrista, arranjador e compositor, Carlos Roldán nasceu em Eilde, Província de Buenos Aires, Argentina, em 22 de abril de 1989. Começou a estudar violão clássico aos nove anos com os professores Miguel Restilo e Carlos Schupak do Instituto de Folclore y Artesanías Argentinas (IFAA) e continuou seus estudos com o guitarrista Jorge Santos no Instituto de Música de Avellaneda (IMMA). Alguns de seus prêmios: “Torneos Juveniles Bonaerenses 2004, primeiro prêmio; finalista do “Pré-Cosquín 2005 e 2006”; primeiro prêmio “Música argentina para guitarra 2006”, organizado pela Guitarras del Mundo; declarado “Cidadão Exemplar” pelo Honorável Conselho Deliberativo da cidade de Avellaneda.

Oferece concertos, atualmente, em todo o país e lidera um excelente site que recomendo visitar: http://guitarrademusicaargentina.blogspot.com.ar    (Marcelo Fébula)

Pela ordem:

Trinos y alas” (chacarera) de Abel Fleury ,”El Quebrao” (gato) de Carlos López Terra, “Cuando se disse Adiós” de Eduardo Falú y Jaime Dávalos, “La llamadora” (zamba) de Félix Dardo Palorma e “La milonga perdida” (milonga) de Atahualpa Yupanqui.

 

 

 

Carlos Moscardini: Um guitarrista e compositor essencial – Por Marcelo Fébula

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Nasceu em Temperley, província de Buenos Aires, em 1959.

Estudou música no Conservatório Provincial “Julian Aguirre” da localidade de Banfield, onde seu professora foi Dinah Galvan.

Trabalhou com artistas renomados da música popular Argentina, fazendo gravações e atuando em teatro, rádio e televisão.

Gravou como solista o “El Corazón Manda” (1997, “Buenos Aires de Raíz” (2005) y “Silencios del Suburbio” (2012) para o selo Epsa Music da Argentina, “Horizonte Infinito” (2009) para Winter & Winter da Alemania, e também “Maldita Huella (2008) para Epsa, trabalho em dúo con a cantora Luciana Jury, além de numerosas participações em outras gravações.

Apresentou-se em mais de 20 países participando de festivais de guitarra como júri em competições nacionais e internacionais, e conduziu cursos de aperfeiçoamento em instituições da Argentina e Europa.

Hoje suas obras são uma referência para a nova música argentina para violão e são incluídas nos currículos de conservatórios de Argentina e Europa.

É membro do Fondo Nacional de las Artes e professor titular nos conservatórios “Gilardo Gilardi” de La Plata e “Manuel de Falla” de Buenos Aires, onde fundou a Carreira de Folclore e Tango.

As suas obras foram publicadas pelas EPSA Publishing, Warner Chappell e Edições Delatour (França).

Compartilhou festivais e cenas com figuras da guitarra internacional como David Russell, Stephan Rak, Yamandú Costa, Carlos Barbosa Lima, Roberto Aussel, Juan Falú, Jorge Cardoso, Ricardo Moyano, Berta Rojas, Helena Papandeou e Dale Kavanagh, entre muitos outros.

Participou do “Montreal International Jazz Festival” com o grupo NAN, e excursionou cobrindo mais de 40 cidades no Japão participando como solista no show “A História do Tango”.

Realizou concertos no “Smithsonian Museum” de Washington, no “Salão Bolívar” de Londres, no “Instituto Cervantes” de Munich,  na “Casa-Museu General San Martin” de Boulogne Sur Mer, e muitos outros salões do mundo.

Tem dado seminários e master classes em várias instituições da Argentina, na “Royal Danish Academy of Music” de Dinamarca, no “Royal Conservatorium” de Bélgica, no “Norges Musikkhögskole” de Noruega, na “La maison de L’Amerique Latine de Paris” de França, entre outras instituições da Europa.

Sua obra “Buenos Aires de Raíz” foi declarada de interesse cultural pelo governo provincial da província de Buenos Aires.

Foi reconhecido no Brasil pelo Ministério da Cultura de Porto Alegre em 2010, com o prêmio Açorianos 2010 ao “Melhor instrumentista” por sua colaboração no cd “Delibab” do Vitor Ramil, onde também acompanhou ao Caetano Veloso, que participou como convidado.

Integra com Juan Falu a lista de compositores da “Concours International de Guitare de la Ville d`Antony” de França, juntamente com Leo Brouwer, Roland Dyens, entre outros.

 (Informações do site de Epsapublishing)

 “Somos muitos os guitarristas que regamos nas obras dos grandes mestres quando chega a hora de ter um repertório. Mas, em relação, são muito poucos aqueles músicos que com suas próprias obras são capazes de fazer mais profundo o caminho que esses mestres deixaram, de levar a bandeira um pouco mais para frente.

Carlos Moscardini é um deles. Com sua notável obra de compositor (afortunadamente já conhecida no mundo), mas também como mestre e fenomenal intérprete do violão, está continuando o legado dos grandes nomes da história da música argentina.”

Marcelo Fébula

Foto: http://www.elintruso.com

                                                                 

 

O folclore de Luis Fernando Amaya, por Marcelo Fébula

O Marcelo Fébula, jornalista, músico e turfista, vem contribuindo todos os meses com seu talento e conhecimento com material inédito em nossas terra sobre o tango e, hoje, chega aqui com uma nota sobre o folclore de Luis Fernando Amaya. Ao Marcelo, Chronosfer agradece a preciosa presença neste espaço, que o qualifica. Gracias, amigo.

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Luis Fernando Amaya e Tres para el Folklore

Luis Fernando Amaya (1939-1968) viveu apenas 29 anos de idade, mas em sua curta vida revolucionou a guitarra argentina. Sua influência chega até os dias atuais.

Nasceu em Las Varillas, passou sua infância e adolescência em Río Tercero (aldeias da província de Córdoba) e depois levou sua arte até Córdoba, Buenos Aries e Europa.

Foi um dos fundadores do lendário conjunto “Tres para el Folklore” juntamente com Carlos “Lalo” Homer e Prudencio “Chito” Zeballos (depois substituído por Alberto Santiago “Pepete” Bértiz), e foi o primeiro guitarrista convidado para interpretar a Misa Criolla, considerado um dos melhores trabalhos da música folclórica Argentina.

Também acompanhou figuras solistas como Chito Zeballos, Horacio Guarany, Mercedes Sosa, Tomás Campos, Marián Farías Gómez, Hernán Figueroa Reyes, etc.

Luis Amaya. Sem dúvida, um dos gênios da música Argentina.

Links e pequenos comentários de cada um deles:

https://www.youtube.com/watch?v=tWLH4vI9zXc

ZAMBA DEL CHAGUANCO (zamba). Letra: Antonio Nella Castro. Música: Hilda Herrera.

Mercedes Sosa y Luis Amaya. Gravado na Europa em 1967.

https://www.youtube.com/watch?v=kMj89U7sckc

CHAYITA DEL VIDALERO (chaya). Letra y música de Ramón Navarro.

Prudencio “Chito” Zeballos, Luis Amaya y Domingo Cura. Gravado na Europa em 1967.

https://www.youtube.com/watch?v=zhVybZ9hzus

PÁJARO CAMPANA (canção tradicional paraguaia compilada por Félix Pérez Cardozo).

Luis Amaya e Chito Zeballos. Gravado na Europa em 1967.

https://www.youtube.com/watch?v=mKeUewRC1G0

LA ATARDECIDA (zamba). Letra: Manuel Castilla. Música: Eduardo Falú.

Chito Zeballos y Luis Amaya.

https://www.youtube.com/watch?v=rcGXepBi-d4

TRES PARA EL FOKLORE

Álbum completo gravado em 1961

Enrique Mono Villegas, por Marcelo Fébula

Enrique Villegas foto

A Argentina é minha casa. Tenho amigos fraternos. O Marcelo Fébula é um desses amigo que a gente dize ser amigo da alma. Jornalista e músico, colabora aqui com texto alentados e ricos sobre a cultura musical do Prata. Hoje, ele chega com Enrique Mono Villegas (foto acima). Não irei comentar nem apresentar. Deixo que cada um descubra esse universo que as palavras de Marcelo nos traz como um presente para todo o sempre. Gracias, Marcelo.

Enrique “Mono” Villegas

A cidade de Buenos Aires na década de ‘60 e início dos ‘70 tinha um movimento cultural de grande alcance e em constante agitação. Antes de ser arrasada (para a implementação de seus planos econômicos, políticos e sociais, os sucessivos governos precisavam de forma indispensável destruir a educação, a cultura e a ciência), mostrava expressões de vanguarda no Instituto de Artes y Ciencias ou o Experimental Di Tella, exibia amostras retrospectivas de filmes de Pasolini, Bergman ou Fellini em cinemas como o Arte ou Lorraine, deixava aberta por 24 horas as portas de bares e livrarias, e oferecia espaços para a crítica social em teatros e cafés. Musicalmente se misturavam os novos tangos de Horacio Salgán, Astor Piazzolla e Eduardo Rovira, o incipiente rock nacional, o ar renovador do Grupo Vocal Argentino e outros conjuntos folclóricos, e o jazz, que em locais como Jamaica ou 676 apresentava figuras nacionais –Horacio Malvicino, Jorge Navarro, Alberto Favero, Santiago Giacobbe, Alfredo Remus, Rodolfo Alchourrón–, e recebia músicos do nível de Stan Getz, João Gilberto, Duke Ellington ou Cannonball Adderley.

Uma das figuras lendárias da música argentina de qualquer gênero, o Mono Villegas, é fortemente ligada a essa cidade que já não retorna. Amante da noite, boêmio, grande conversador, fã do cinema, a literatura e as mulheres, nessa Buenos Aires ele vivia fazendo somente o que tinha ganas.

Raramente acordava antes das três horas da tarde, e seus dias eram uma rotina de coisas que desfrutava: sentar–se ao piano, andar, ir ao cinema (se fosse com uma mulher, melhor), e conversar. Amigo de Borges, Piazzolla, Xul Solar y Macedonio Fernández, possuía um afiado poder de observação a serviço de uma crítica precisa e implacável. Defenestrando e louvando da mesma forma, sua voz trovejava em teatros, bares e reuniões entre controvérsias e discussões com a música como tema central. Cauteloso e sarcástico com sua própria fama, quando muitos falavam de seus sucessos nos Estados Unidos, ele lembrava seus fracassos. Só bebia leite e dizia que para poder viver só precisava de 30 amigos que o convidaram para jantar em suas casas uma vez por mês.

De aristocrática família sanjuanina (da província de San Juan) e avô chileno, nasceu no bairro de Palermo da cidade de Buenos Aires. “Nasci porque não me consultaram antes, em 3de Agosto de 1913, em Charcas e Agüero.” Seu pai foi dentista, notário e advogado, até que abandonou tudo para se dedicar a criação de galos de briga. “Minha mãe morreu muito jovem, quando eu tinha seis meses. Parece que a única função que cumpriu em sua vida foi ter–me. Cresci com umas tias condescendentes que nunca me forçaram a nada. Tive sorte: sempre fiz o que me foi dada a vontade (…) Às vezes me pedem contar a minha biografia. Eu sempre respondo: minha biografia termina aos sete anos de idade. Nesse momento aprendi a tocar o piano. E tocar o piano foi a única coisa que eu fiz o resto da minha vida.”

O pequeno Enrique foi inscrito ao mesmo tempo na escola e no Conservatório Williams, mas aprendeu a decifrar uma partitura musical antes de ler. Duas semanas após a primeira lição, tocava Mozart corretamente. “Não gostava de estudar. Fui para o Colégio Nacional Mariano Acosta, mas no quarto ano estava livre pelo grande número de faltas. Faltava, mas não para ir um bar e jogar bilhar. Fugia da escola para voltar ao Conservatório”. Seus clássicos favoritos foram Ravel e Debussy, e com nove anos descobriu o jazz por meio daqueles que chamava seus mestres espirituais: Art Tatum, Fats Waller, Duke Ellington e Louis Armstrong, os quais marcaram para sempre seu estilo e repertório. Depois iria incorporar influências de outros músicos como Thelonious Monk ou Bill Evans.

Em 1932, quando tinha 19 anos, estreou no Teatro Odeon, com uma orquestra regida por José Gil, o Concerto em Sol de Ravel. Tinha lido o concerto na loja de música Gurina, adjacente ao Conservatório onde estudava. Dois anos mais tarde, no Conselho Nacional de Mulheres, estreou em nosso país a Rhapsody in Blue de George Gershwin. Ganhou seu primeiro bom dinheiro tocando na orquestra de Eduardo Armani no Alvear Palace Hotel, onde também fazia suas refeições, e na rádio El Mundo. Foi demitido da rádio quando declarou que a morte de Ravel era mais importante do que a morte do Papa.

Em 1941 estreou a sua obra Jazzeta, com Carlos García como solista de piano e os melhores músicos de jazz desse tempo, no Teatro Casino. No ano seguinte, dirigiu o concerto Ideal de Jazz na rádio Belgrano, e depois forma seus primeiros grupos de importância: o Santa Anita Sextet (para abrir a boite La Cigale) e o grupo Los Punteros. Em 1949 substitui ao Horacio Salgán como pianista do duo folclórico Martínez–Ledesma, e em 1950 dá um recital de piano no teatro Odeón, com música folclórica na primeira parte, Brahms, Schumann, Ravel e Bartok na segunda, e melodias de jazz na terceira, um programa que revelava o único dogma que o Mono respeitava: a liberdade. Depois grava para o selo Music Hall composições dos Irmãos Ábalos com guitarra e bombo, e temas de jazz (disco Enrique Villegas + ritmo). No ano ‘53 grava a música da obra Un Tranvía Llamado Deseo, de Tennessee Williams, que estreou no teatro Casino a companhia da atriz Mecha Ortiz. Por aqueles tempos foi sócio–fundador do Bop Club Argentino, que nucleava os mais proeminentes solistas do jazz local apoiando as tendências de Charlie Parker e outros músicos revolucionários do gênero, contra os tradicionalistas agrupados em torno do Hot Club de Buenos Aires.

Com exceção de Oscar Alemán e sua viagem à Paris dos anos ‘30, Villegas tornou–se um dos primeiros músicos jazz argentinos de exportação, antes de Lalo Schiffrin ou Leandro “Gato” Barbieri. Em 1955 foi contratado pela Columbia para gravar cinco álbuns nos Estados Unidos. Gravou apenas dois: Introducing Villegas (1955) e Very Very Villegas (1956), juntamente a os notáveis Milton Hinton (contrabaixo) e Cozy Cole (bateria). Nestas obras ele historiava o jazz desde o piano, com sua visão pessoal. Destacando a realização do primeiro disco, a capa traseira do segundo comentou: “Há um pouco de tudo no que ensaia Villegas, e ainda quando conscientemente adota referências de outros músicos, sempre soa diferente.”

Mas a gravadora não estava inteiramente convencida com a idéia: um músico argentino de jazz misturado sem prejuízo com músicos negros. Embora eles não chegassem ao extremo de pedir–lhe para se vestir de gaucho (como aconteceu com os tangueros nos cabarés parisienses nas décadas de 1920 e ‘30), para seguir o notável caminho iniciado propuseram a gravação de boleros do compositor cubano Ernesto Lecuona. Mas Villegas tinha viajado para fazer jazz, não para obedecer ordens daqueles que lhe tinham dado uma chance, e foi o fim de sua relação com a companhia gravadora. “Nunca me arrependi de não ter seguido na Columbia por me recusar a tocar qualquer coisa que não fora jazz.” Para ele não foi muito problema permanecer encalhado em Manhattan. Passou seus dias indo ao cinema, tocando em pequenos bares, jantando café com leite com pão e manteiga e ouvindo música. “Sofri muito em Nova York, mas aprendi a amá–la. Conheci a todos os gênios: Duke Ellington, Coleman Hawkins, Bud Powell, Cole Porter, Art Tatum, Count Basie, Louis Armstrong, Nat King Cole.” Em 1958 tocou jazz pela primeira vez durante o Festival Casals na Universidade de Rio Piedras, Puerto Rico.

O grande e às vezes hilariante repertório de anedotas de Villegas tem uma daqueles tempos: “Eu estava muito apaixonado por uma garota, mas um dia discutimos e decidimos nos separar. Fiquei muito deprimido. Estava andando com ela e pensei: “Quando passe o primeiro carro pela rua, eu deito abaixo”. Veio um carro e atirei–me, mas naquele exato momento a luz vermelha foi acesa e o carro parou. Era um táxi. O que a mulher fez? Tomou o táxi e se foi. Tempo depois falamos ao telefone e disse–lhe: “Se tu queres me ver agora, vai te custar 35 centavos (um bilhete de autocarro). Se tu queres me ver amanhã, vai te custar 850 dólares (uma passagem de avião para Buenos Aires). Claro, dois dias depois eu estava na Argentina, sem ela. Nunca mais a vi.”

Voltou dos Estados Unidos lamentando não ter feito uma gravação em um piano elétrico, novidade até então, e não ter feito outro disco, de dois pianos, com o grande Erroll Garner. Eles ainda tinham pensado o título: Black & White.

Por que me chamam Mono? Será porque imito muito bem aos seres humanos.” De volta em Buenos Aires recebe seu famoso apelido –também chamavam–lhe Quasimodo ou simplesmente El Loco–, e verifica que, estranhamente, sua fama cresceu. “Agora os meninos acreditam que sou Beethoven”, comentava entre risos. Por esses tempos cercavam–lhe jovens músicos, e sua residência era o centro de reuniões em que filosofando, bebendo e tocando chegavam até altas horas da noite. Em 1963 viajou para a Europa e tocou na Alemanha, França e Espanha.

Costumava reclamar sobre a má qualidade dos pianos no país. A gravação ao vivo do recital no teatro Astral ao lado de Jorge López Ruiz e Eduardo Casalla em 6 de julho de 1964, deu à luz um álbum intitulado “Al Gran Pueblo Argentino: Pianos!” (Ao Grande Povo Argentino: Pianos!), uma frase que hoje é comumente usada entre os músicos (trocadilho com uma frase do hino nacional argentino: Ao grande povo argentino, saúde!). Impulsionado pelo produtor Alfredo Radoszynski, também gravou “Villegas em Cuerpo y Alma”, onde a primeira banda é uma série de variações clássicas sobre o tema de Johnny Green que dá nome ao trabalho (Body and Soul). Sempre dentro da célula piano – baixo – bateria, também fez gravações de notável valor documental nas instalações da rádio Municipal juntamente com Alfredo Remus e Néstor Astarita, graças à feliz iniciativa de Julio Alvarez Vieyra, quem gravava aos artistas que se apresentavam em seu programa.

Em 1966 abriu um local: “Villegas y sus Amigos”, na rua Viamonte entre Talcahuano e Uruguai. Lá tocava prontamente entre a uma e meia e as três da manhã. Mas o governo do ditador Onganía, que era amplo em suas medidas –desde a gravidade imperdoável de expulsar violentamente aos cientistas do país, até o ridículo de processar casais em praças ou declarar a guerra contra a minissaia e o cabelo comprido–, fechou o local por poluição sonora. Naqueles dias um burocrata da ignorância falou mal e publicamente de comunistas, judeus e homossexuais, tudo pelo mesmo preço. O Mono referiu–se ao tema desde o palco: “Estou salvo. Não tenho nenhuma idéia política, meu nome é Villegas, e gosto tanto das mulheres que cada dia uma me diz que não.” Uma década mais tarde, durante os piores anos do Proceso (a ditadura que abarcou o período 1976–1983), começando um concerto no teatro San Martin fez sombra com a mão sobre os olhos, mirou para a platéia e disse: “Parabenizo–lhes, vejo que ainda estão vivos. Isso, hoje, é para comemorar.”

Em 1967 grava “Encuentro”, música de Duke Ellington com músicos da Orquestra de Ellington adicionados a seu trio: Paul Gonçalves no sax tenor e Willie Cook no trompete. Antes do final do “Onganiato” e depois de outra viagem pela América do Norte e Europa, volta ao país, trabalha em café–concerts e faz recitais em Buenos Aires e no interior. Em 1970 mora em USA.

Em 1971 o senhor baixinho, de costas curvadas e longos braços, se torna o primeiro mono e jazzman que toca no Teatro Colón de Buenos Aires. Interpreta a “Rhapsody in Blue” com instrumentação de Ferde Grafe e a Orquestra Filarmónica de Buenos Aires conduzida por Pedro Ignacio Calderón. No ano seguinte dá uma série de concertos organizados pela empresa SEGBA no Teatro Municipal General San Martín da Capital Federal e outras localidades. Em 1973 grava o disco de seus 60 anos juntamente com Oscar Alem e Osvaldo López, e um ano depois novamente apresenta a grande obra de Gershwin frente de 20.000 pessoas no clube Velez Sarsfield. No ano ‘75 retorna ao Teatro Colón, agora com um repertório de jazz.

Nos últimos anos tocou em “La Peluquería” do bairro de San Telmo. “Estou chegando ao fim e nunca me prostituí com a música.” Em 1985 recebe uma homenagem no Centro Cultural San Martín, compartilhando uma jam session com os muitos amigos que tinham vindo para testemunhar–lhe seu carinho e admiração. Essa noite, o tema final do concerto não foi seu acostumada obra de John Coltrane. Interpretou “Adiós Muchachos” (Adeus Meninos).

Assistido por a sua secretária Selma Henry (“é para mim o que George Sand para Chopin, exceto que eu não sou ele”),a última coisa que falou com o piano foi o tema “El hombre que yo amo.” Morreu em Buenos Aires em 10 de julho de 1986, enquanto fazia exercícios de reabilitação para um quadril quebrado. O contrabaixista Ferio enviou um telegrama da cidade de Mar del Plata: “Que descanses em jazz.” Outro grande amigo, Hermenegildo Sábat, disse: “Ele não morreu. Se cansou de ser livre.” E Manolo Juárez contou: “Nunca vi um velório assim: havia taxistas, motoristas de ônibus, intelectuais, músicos e pessoas do bairro. As canecas de café iam e vinham, como as empadas e as tortas. Muitas anedotas, muitos risos. “Mas che”, interrompia de vez em quando alguém com voz baixa e solene. Mas o clima continuou, como naturalmente ele queria.”

Infelizmente não ouvi ao Mono tocando ao vivo. Aprendi a amá–lo e admirá–lo através de suas gravações, tentando que o tremendo personagem revelado nos relatórios e entrevistas não ocultara sua grande dimensão artística.

Se houver algo difícil na música, é ter o “swing”, a “onda” de determinado gênero. E muito mais difícil é alcançá–lo com relação a vários gêneros. Por exemplo, um ouve o álbum de tangos que gravou Plácido Domingo, e percebe que ai há muito pouco tango. Com o disco feito por Daniel Barenboim em tributo a Duke Ellington, acontece a mesma coisa: ai quase não há nada de jazz. E ninguém pode dizer que Plácido canta mal, ou que Daniel não é um excelente pianista e diretor de prestígio internacional. Simplesmente eles não tinham a linguagem necessária para lidar com essas músicas populares, tango e jazz. Enrique Villegas conseguiu isso negado para muitos: tocar com entidade distintos gêneros musicais. Quando interpreta obras clássicas se escuta clássico. Quando faz canções folclóricas, são ouvidas zambas, chacareras e gatos. E quando está imerso em sua paixão, o jazz, soa com um estilo claramente jazzístico, mas ao mesmo tempo com referências às suas raízes argentinas. E precisamente por atrapalhar essas “ondas”, também experimentou além das convenções tocando Chopin jazzeado, o tango Caminito como um blues, uma canção esquecida ou um hit do momento. Outra coisa muito importante que possui o Mono, é um objetivo perseguido por multidões de músicos: alcançar um som pessoal. Na nossa terra é fácil individualizar o bandoneón de Aníbal Troilo, a orquestra de Osvaldo Pugliese, o acordeão de Raúl Barboza ou a guitarra de Roberto Grela, porque todos eles conseguiram essa marca. Villegas e seu piano, também. Dentro do jazz, seu talento permitiu–lhe se mover com facilidade entre grandes do gênero e soar diferente tocando mais ou menos o mesmo que os demais. Em um plano geral de swing ou bebop, sempre soou o estilo pessoal de Villegas, com que ele poderia interpretar obras velhas e muito conhecidas sem entediar ao público. Columbia, talvez apreciando aquela marca da originalidade, valorizando a solvência instrumental que se movia em uma zona intemporal mistura de tradicionalismo e modernidade, chamou seu segundo álbum em os EUA “Very Very Villegas.”

O melhor pianista de seu tempo em nosso país, o mais original e menos anexado aos modelos, sempre tocou –como muitos músicos da mesma época– privilegiando a musicalidade acima do virtuosismo, usando melodias conhecidas apenas como o lugar desde onde expor seus sentimentos e idéias próprias. E deixou seu estilo marcado ao fogo na memória musical de nossa terra.

Era um incansável conversador e gerador de anedotas. Não gostava nada tocar em um piano desafinado, então às vezes só fazia um ou dois temas em seus recitais. Também usava a conversa como uma ferramenta para gerar o clima necessário e instalar a sua arte. Mas o personagem muitas vezes superava ao músico, e certo público costumava ir a seus concertos só para ouvi–lo falar, não para ouvi–lo tocar. Aqui vai uma amostra de suas opiniões, muitas delas expressadas desde o palco, mas algumas anedotas e testemunhos.

Desde o início do “show business” nos Estados Unidos, terminou–se a música, tudo é negócio, e eu já disse que não há nenhuma música popular, há letras populares. Oitenta por cento da humanidade tem uma banana no seu ouvido e não sente nenhum prazer ouvindo música. Eu sou inimigo dos cantores, com raras exceções: quando a voz é utilizada como um instrumento mais. O paradoxo é que a voz humana é o mais perfeito dos instrumentos, mas ninguém usa como um instrumento sino para fazer batidas e frenesis. É horrível: desafinam como cães e são ídolos populares que ganham milhões de pesos Além disso, colocam tal volume de som que vão enlouquecer a todos os meninos, porque não se pode escutar música com tanto volume”.

Do ponto de vista musical, é totalmente horrível um cara que faz ta–ta–ta por dez minutos, sem nenhuma variante, o que a letra repita sempre o mesmo e gritando. Isso, para um músico que tenha ouvido, é insuportável.”

Quando se toca bem, você precisa de imaginação, não de copiar aos outros, por isso é que existem poucos músicos de jazz, desde que ele apareceu há cinqüenta ou mais anos. Não sei no rock, porque foi um grande negócio que concebeu um cara com os Beatles”.

Agora os músicos de jazz estão indo para o “cante jondo”, porque parece que não acreditam no jazz. E em nossa música folclórica se fazem imitações dos Swingle Singers ou incluem–se ritmos da bossa nova. Isso significa que ninguém acredita em si mesmo, porque procuram identificar–se com outro. Não há nenhuma identidade mais que seja você mesmo”.

Todo mundo que toca porque gosta de tocar, toca bem”.

Há uma nova mentira aqui: a música que representa a cidade de Buenos Aires. Não há nenhuma música que represente ela. A Cidade de Buenos Aires é representada por a generala, o futebol, as corridas, o escolaso e o cafishio (um jogo de dados, o futebol, as corridas de cavalos, os jogos por dinheiro e o cafetão). A música é uma arte abstrata que existe graças a alguns poucos compositores. Esta pesquisa da música de Buenos Aires parece que é uma vaidade, ou não sei o que, não entendo.”

Quando um artista está mentindo para si mesmo e aos outros para ganhar dinheiro –e o dinheiro traz a prostituição– acabou–se. O que é o sucesso? É qualquer coisa e termina em um segundo. É gerido por três ou quatro caras que possuem os discos e a promoção, que é o dinheiro que se gasta em ganhar a simpatia de uns ou outros. Tudo é uma combinação da sociedade de consumo.”

Na música há fãs, e parece que se há pessoas que gostam do tango, eles têm que odiar o jazz e o folclore. E até mesmo algumas pessoas interessadas nessa guerra. Existem duas músicas: a boa ou a má. E bem tocada ou mal tocada”.

A vida do ser humano é totalmente absurda, a partir do momento em que ele nasce para morrer. O sentido teria de ser encontrado na própria vida, na sobrevivência diária.”

Espanha. Lá estão todos felizes. Um espanhol diz a outro: –Retorna Franco. –Quando? –Quando se recupere da autópsia.”

Não conheço nenhum diretor artístico dirigindo algo artisticamente. São todos homens de negócios.”

Qualquer desonesto coloca aqui uma academia e começa a cobrar dinheiro aos pais que levam a sua filha acreditando que vai tocar como Martha Argerich.”

No ambiente da música existem três categorias: compositores, intérpretes e executores.”

Há muitos que não se preocupam para tocar melhor, senão para tocar mais rápido. Estou falando dos artistas clássicos, que são os parasitos da música.”

A música clássica –que na realidade não é tão clássica– quebrou as regras que existiam antes e criou outras novas. O primeiro que começou foi Debussy, após os três vienenses: Webern, Alban Berg e Schönberg. Depois veio a música aleatória. E o que vai dizer o que é bom e que é ruim vai ser o tempo, a durabilidade. Dentro de seis cem séculos, veremos. Claro, vai continuar–se tocando Beethoven e Bach, porque são infinitos. Bernard Shaw disse: O melhor da música popular é que não é popular por muito tempo.”

Sem blues, não há jazz. O blues é a base de tudo, como a vidala em nossa música. Existem muito poucos cantores de vidala, porque é o mais difícil. É muito mais fácil a que fez Ariel Ramírez sobre Alfonsina Storni.” (Villegas refere–se a zamba Alfonsina y el Mar).

Os dois grandes mestres da música popular argentina são Atahualpa Yupanqui e Adolfo Abalos. O santiagueño Díaz, o salteño Cuchi Leguizamón, também Polo Giménez. Todos eles são compositores. No caso de Giménez, primeiro recopilava y depois começou a criar suas próprias melodias seguindo os moldes melódicos e harmônicos, que são inexoráveis. Se uma zamba não tem tais ou quais modulações, não é uma zamba. O que acontece é que uma mentira repetida milhões de vezes se torna meia verdade, mas nunca verdade completa. Quando sai a verdade, morre a mentira”.

No outro dia fui para o Teatro Coliseu, não sei quem tocava, e tive que sair porque o som me puxou para fora, não podia ouvir. Não vou aos shows de rock porque colocam muito volume, quem gosta da música não pode suportá-lo. Para os meninos isto parece bonito, então acreditam que qualquer cara que toca é um grande pianista. São bonitos, as velhas adoram.”

Terminei com a mentira de que a música é uma linguagem universal. A música é uma língua como o inglês, francês ou espanhol. Quem fala e conhece a linguagem da música, entende, quem não, fica impressionado mais não sente nenhum prazer. Para nós, os músicos, escutar música instrumental é um inexplicável prazer físico, que entra através de um só dos sentidos: audição. E nós gritamos de alegria e prazer, compartilhamos as coisas, enquanto os caras sérios, duros, são fritos. Eles são isentos do prazer requintado de ouvir música, do que a maior parte da humanidade está isenta. Isso me deixa triste, porque escutar música é de graça. As pessoas ficam entediadas com a música, e por isso precisam do ballet, da ópera, da palavra. A música de câmara não existe, é muito árida para as pessoas comuns. Agora acredita–se que se alguém não gosta da música é um inculto, e não é assim. Não é uma questão de cultura senão de ouvido, a falta de sensibilidade é porque esse sentido não é exercido. Minha duvida foi sempre se as pessoas entendem a minha música. Como o homem mente… Acreditam que comer caviar com champagne dá status, embora não gostem. Quando eu toco, eu não sei se porque querem–me tanto, eles aplaudem. Mas, entendem algo?”.

Sou louco e vicioso. Porque gosto de viver com o piano em qualquer lugar. E porque quero tocar em qualquer momento”.

É muito engraçado que venham a me perguntar que sensação tenho com o triunfo. Que triunfo? Quando triunfei eu?”.

O humor é a única saída para a artista. Se não, sentiria horror da realidade e da vida das pessoas de hoje, que é a vida de sempre”.

Vivi 63 anos e não conheço nenhum argentino. Conheço riojanos, salteños, sanjuaninos, mendocinos, jujeños, porteños… Não conheço nenhum argentino. Além disso, todos eles acreditam que tem a melhor empada”.

O jazz é improvisação total. Se você escreve, para de ser jazz. É o que Picasso fez com Las Meninas de Velázquez: partiu de um tema para se expressar livremente.”

Eu não me tornei famoso com a música, tornei–me famoso com os relatórios. Vou andando ao longo da rua Corrientes e todos cumprimentam–me: Tchau Mono!, E comentam entre si: “O que vai lá é o melhor pianista da Argentina”. E com certeza eles nunca me ouviram”

Eu gosto acima de tudo, da música e amor. Se fosse uma hermafrodita com um órgão sexual em cada mão, ficaria aplaudindo o dia todo”.

Sigo um preceito hindu: se você pode estar sentado, não fique parado; se você pode estar deitado, não fique sentado.”

Toda a minha vida privei–me das coisas que não gosto.”

Desde que ouvi pela primeira vez ao Duke Ellington, escolhi jazz. Não estou interessado no dinheiro”.

Eu não acredito em Deus. Mas se ele quer existir, que exista. Eu não me oponho”.

O fenômeno é a música, que abre todas as portas de comunicação. Quando eu toco preciso pelo menos de uma pessoa que me escute”.

A vida é a coisa mais maravilhosa que existe, mas o frustrante do presente é que muito em breve se torna passado. E o futuro sempre é incerto. O único futuro é a morte.”

O St. Louis Blues é o hino do jazz. Nosso hino é La Cumparsita, o hino dos cubanos é El Manisero, o hino de Porto Rico é El Jibarito, e o hino dos brasileiros acho que é… dan-dan-dan dan-dan-dan, que não me lembro como se chama, mas escreveu o Ari Barroso. E bom este assunto porque assim fica tudo aclarado”.

Com Arthur Rubinstein somos duas almas gêmeas. Os dois jogamos poker.”

Como não percebem que Louis Armstrong quando canta ainda está tocando a trompete.”

Inicio todos os concertos com o St Louis Blues. É para preparar os dedos, e porque tem a vantagem que os três o sabemos.” (palavras de Villegas no álbum “60 Años” que ele gravou ao lado do baixista Oscar Alem e o baterista Osvaldo López)

O ser humano com sua fantasia e desejo, fala maravilhas de coisas que gosta, mas não aconteceram. Porque a vida é muito triste, muito difícil, e está cheia de analfabetos que tem o poder e decidem a vida dos maiores artistas. O homem medíocre toma o lugar do homem capaz”.

Os famosos pontes, que dentro do tango querem dizer uma coisa e dentro do jazz querem dizer outra. Às vezes eu começo a tocar uma música, nunca me lembro do ponte, coloco o ponte de outro, faço outro ponte, e assim até que posso continuar”.

Há muito tempo que penso na morte. Tenho grande curiosidade, e não tenho medo. Se esse absurdo chamado ser humano não tivesse terror á morte, a exploração do homem pelo homem não seria possível.”

Não encontrei nenhuma sociedade onde a poligamia fosse permitida. Embora em todos os lugares é praticada secretamente.”

Borges é o único que eu posso ouvir com minha boca fechada. Mas Borges não sabe que sou eu quem esta ouvindo”.

Durmo doze horas e se posso, quatorze. Assim o dinheiro alcança. É muito perigoso para mim abrir meus olhos porque imediatamente gasto dinheiro”.

Que tem de ruim ser mulher da vida? O ruim seria ser mulher da morte, não?” Na Argentina chama–se “mulher da vida” as prostitutas, um eufemismo hoje em desuso.

Não entendo aos folcloristas. Dizem ¡Vai a segunda! e voltam a tocar a primeira”. (Em muitos ritmos folclóricos argentinos, é comum dizer “¡Se va la segunda!” referindo–se à segunda parte da canção. Mas essa segunda parte quase sempre é harmônica e melodicamente igual à primeira. A mudança ocorre só nas letras, no canto).

Em um relatório em 1980, em “La Vida y el Canto”, o lembrado programa de rádio de Antonio Carrizo, o Mono disse que seu pai gostava do poker e corridas de cavalos. Uma vez ele o acompanhou ao hipódromo, e viu que fazia suas humildes apostas de “um e um” (um bilhete para vencedor e outro bilhete para colocado) com dois cavalos de uma mesma corrida. Minutos depois seu pai ganhava com os quatro bilhetes, porque seus dois cavalos eleitos empataram a corrida…

Outra anedota do mesmo programa, referindo–se ao turfe. Para comprar um bom instrumento, Villegas foi pedir dinheiro a um amigo rico. O homem disse–lhe que não poderia emprestar tanto dinheiro, mas sim poderia dar–lhe mil bilhetes a vencedor para uma corrida do dia domingo. Chegado o dia, o cavalo ganhou com um dividendo de quatro pesos e fração. Assim o Mono adquiriu um dos pianos que acompanharam–lhe durante sua vida.

Uma vez, uma senhora reclamou:

Que comece o concerto!

Senhora, o concerto já começou–respondeu Villegas, que falava com o público.

Bom, então que comece a música!–insistiu a senhora.

Senhora, quando comece a música, você não vai a entender–disse Villegas, e continuou conversando.

Durante um concerto de Arthur Rubinstein, o Mono seguia seu desempenho como se fosse um músico de jazz, com gritos, palmas e chutando no chão. Até que uma senhora disse:

Por favor, o que dirá o Mestre?

O Mestre vai dizer que pelo menos há um que o entende–respondeu o Mono.

Em uma reunião de amigos em sua casa, tirou um saco grande e pediu a um deles acompanhá–lo até a confeitaria para procurar comida. Uma vez lá, quando já estavam prontos o encargo e a conta, depositou o saco no balcão. Estava cheio de doces. Eram aqueles que, durante meses, tinham–lhe dado naquela mesma confeitaria alegando não ter dinheiro pequeno quando ele fazia pequenas compras, retornando de suas apresentações.

Uma vez ele teve que acompanhar a uma cantora de ópera, com um repertório de Debussy. A cantora foi muito mal com o ritmo, e Villegas tive que segui–la de qualquer forma, até que ele se cansou e decidiu tocar estritamente o marcado na partitura. Música e canto foram distanciando–se tanto que em um ponto a cantora parou e repreendeu–o: –Villegas, porque você não me segue? O Mono respondeu: –Se eu sigo a você, quem segue ao Debussy?

Às vezes era até mesmo agressivo com as pessoas. Ele dizia que nos bares onde se tocava jazz tinha que haver uma placa com a legenda “Estritamente proibida à entrada do público.” Era uma criança grande, capaz de dizer as coisas mais terríveis para qualquer pessoa, sem que acontecesse nada”. (Alfredo Remus)

Nós devemos resgatar–lhe, porque para ele a música era uma alternativa mais do afeto e da emoção, e porque com riscos ameaçando sua integridade artística nunca duvidada em saltar para a piscina. Sua liberdade de viver é um exemplo que vai além de qualquer gênero”. (Manolo Juárez)

É difícil encontrar outro artista que renuncie, como ele, as oportunidades perto da fama, sucesso e riqueza. Não interessavam–lhe religião nem poder. Foi o exemplo de um artista invencível. Com seus gestos, suas palavras e sua voz nunca se rendeu aos amenidades ou formalidades sociais. A liberdade foi seu amante, e ele nunca abandonou”. (Hermenegildo Sábat).

Sinto uma grande admiração pela sua atitude para com a música e arte, e pela maneira em que ele se dispensava das convenções. Era um cara muito estranho, fazia jazz, tango, folclore, música clássica e nada disso: era música Villegas. Como todos os improvisadores, musicalmente, dependia do dia: quando estava bem, era extraordinário. Um grande evento”. (Eduardo Lagos)

A característica principal de tocar com Villegas era que nunca havia algo premeditado, todo era absolutamente inesperado, pura improvisação. Com ele não existiam os ensaios, e se algumas vezes ensaiamos, no momento de tocar ele começava a tocar qualquer tema menos os que tínhamos provado. Mesmo às vezes tocava temas muito velhos, que só ele conhecia. Musicalmente, o que tocava maravilhosamente bem eram as baladas, esse era seu ponto forte. Eu lembro–o assim, suspenso no ar e criando um grande clima, tinha a possibilidade de lidar com os silêncios, que na música é o mais difícil.” (Alfredo Remus)

Tinha tantas anedotas como apresentações, e um defeito insuportável: ele dizia sempre a verdade.” (Jorge Navarro)

A história de Villegas é feita de sucatas, memórias incompletas e mitologias. Foi um notável pianista de jazz, claro, mas era também, mesmo enquanto viveu, uma lenda.” (Diego Fischerman)

Em Villegas o jazz era uma coisa que latejava no palco. As gravações não eram muito importantes para ele, e lançou discos somente quando poderia gravar tudo o que queria. Embora poucos em relação ao seu talento, felizmente deixou valiosos testemunhos de áudio. Se este artigo tem algum mérito, é recomendar–lhes a discografia que detalho mais abaixo. E sugerir–lhes que, quando passem pelo canto das ruas Charcas e Agüero, cumprimentem ao Mono. Lá há uma placa a lembrá-lo.

Discografía

Temas folklóricos de los Hnos Abalos (selo Music Hall, 1952).

En el Alamo, com E. Méndez no contrabaixoe P. Poggi em batería (Musical Hall, 1953).

That’s my Desire, com Méndez e Poggi (Musical Hall, 1953).

Introducting Villegas, com Milton Hinton en contrabaixoe Cozy Cole em batería (Columbia, New York, 1955).

Very, Very Villegas, com Hinton e Cole (Columbia, New York, 1957).

Villegas en Cuerpo y Alma, com Jorge López Ruiz em contrabaixoe Eduardo Casalla em batería (Trova, 1965).

Metamorfosis – 24 Preludios op. 28 de Chopin, com López Ruiz e Casalla (Trova, 1967).

Tributo a Monk, com López Ruiz e Casalla (Trova, 1967).

Encuentro, com Paul Gonsalves em saxofone tenor, Willie Cook em trompeta, Alfredo Remus em contrabaixoe Eduardo Casalla em batería (Trova 1968).

Porgy and Bess, piano solo (Trova, 1968).

Baladas de Amor, com López Ruiz (Trova, 1968).

Enrique Villegas 60 años, com Oscar Alem em contrabaixo, Osvaldo López em batería, Ara Tokatlian em saxofonee flauta (Trova, 1973).

Inspiración, con Tokatlian em saxofone tenor e Guillermo Bordarampe em batería (Cabal, 1975)

A discografia é enriquecida com relançamentos de álbuns como Cuerpo y Alma (Random Records) e os quatro volumes de Grabaciones Inéditas (1962-1965) publicado pelo selo Melopea, em trio com Alfredo Remus e Néstor Astarita.

Algumas sugestões no Youtube

Honeysuckle Rose (Villegas – Hinton – Cole)

https://www.youtube.com/watch?v=AdO_mOADG-s&list=PL7A7D6E742A2D7BE1&index=6

Night in Tunisia (Villegas – Hinton – Cole)

https://www.youtube.com/watch?v=0ZVBcYAGflI&list=PL7A7D6E742A2D7BE1&index=7

Rosetta (Villegas – Hinton – Cole)

https://www.youtube.com/watch?v=vG1zIGyGITU&index=9&list=PL7A7D6E742A2D7BE1

Caminito (Villegas – López – Alem – Tokatlian)

https://www.youtube.com/watch?v=F5uBZwpgzTY

Perdido (Villegas – Gonsalves – Cook – Remus – Casalla)

https://www.youtube.com/watch?v=-YAb8ys1mIo

Nostalgias Santiagueñas (Villegas – Hermanos Abalos)

https://www.youtube.com/watch?v=G6_GZB7aN4Y

Aníbal Troilo, dos maiores do tango, por Marcelo Fébula

Recebi, a meu pedido, do amigo Marcelo Fébula, jornalista, músico e turfista, argentino um alentado e rico texto que passeia com toda a densidade que merece, a vida de um dos maiores tangueiros dos países do Prata: Aníbal Troilo, o Pichuco. Um artigo longo, que atravessa as gerações e para muito além da superfície de uma leitura, seu subtexto nos transporta pelas épocas portenhas e do tango. Ao fim, destaques para citações, vídeos e áudios recomendados. O Marcelo recebeu o apoio de Maria Irene Soares de Freitas na correção, revisão e tradução do texto original em espanhol. Ao Marcelo, que será colaborador, e Irene meu abraço de muito obrigado em especial pela amizade.

com o Polaco Goyeneche e Angel Cárdenas

Pichuco

Nasceu em 11 de julho de 1914 no Abasto, e passou sua infância entre os limites desse bairro, Almagro e Palermo. Morava no mesmo quarteirão onde nasceram dois grandes pianistas: o jazzista Enrique Mono Villegas e o folclorista Adolfo Abalos. Seus pais foram Felisa Bagnolo e Aníbal Carmelo Troilo, quem o apelidou “Pichuco”. Alguns estudiosos afirmam que pichuco é uma palavra da mesopotâmia argentina que significa negrito (pretinho), usado como um diminutivo de pichú. Mas em guaraní (a língua dos nativos das províncias de Corrientes e Misiones), negro (preto) é dito cambá, porém há outros que argumentam que a derivação correta é respeito da palavra do guaraní pichi (pequeno). Uma terceira teoria sugere que pichuco talvez venha do verbo hispanizado pichuquear, derivado do substantivo do idioma indiano quéchua pichusca (descolamento de flores do alfarrobeira).

     “Meu pai foi açougueiro e morreu quando eu tinha oito anos. Foi guitarrero e cantor, e me deixou a pena de não me lembrar a sua voz. (…) A sensação que eu tenho da certeza de sua morte foi a blusa preta com que minha mãe, dois dias depois, me enviou para a escola. (…) Antes de colocar o fueye em meus joelhos, coloquei o travesseiro da cama. Até que um dia fomos para um piquenique no que foi o antigo Hipódromo Nacional. Haviam trazido dois bandoneones e três guitarras. Quando os músicos saíram para comer, subi alguns degraus e peguei um bandoneón. Essa foi a primeira vez. (…) Aos dez anos, o fueye me atraiu tanto como uma bola de futebol. Jogaba como centrojás no equipe Regional Palermo. (…) Foi um pouco difícil convencer a la vieja, mas no final ela deu-me o gosto e tive meu primeiro bandoneón: dez pesos por mês em quatorze parcelas. E desde então eu nunca mais me afastei dele”.

Com este instrumento, comprado de “um ruso da rua Córdoba”, que desapareceu após o pagamento da quarta parcela, Aníbal Pichuco Troilo iria tocar música a maior parte de sua vida.

Gordinho, retacón e com ojos de ponja, estudava na escola Carlos Pellegrini e estava sempre atento aos fueyes que soavam nos locais do bairro. Já com seu próprio instrumento, depois de apenas seis meses de aulas com os modestos professores Juan Amendolaro e Alfredo De Franco, começou a tocar em um evento de caridade do cinema Petit Colón, fazendo sua primeira apresentação formal em 1925, aos 11 anos, no café Ferraro da rua Pueyrredón, esquina com Córdoba, perto do antigo Mercado do Abasto, hoje transformado em shopping. Mais tarde integrou uma orquestra de jovens senhoras (naquela época era comum que uma orquestra formada por mulheres tivesse um ou mais membros do sexo masculino vestidos com trajes), a orquestra de Eduardo Ferri, e aos 14 anos já tinha formado um quinteto para trabalhos no cinema Palace Medrano.

Em dezembro de 1930 é contratado por o sexteto Vardaro-Pugliese. Nesse tempo conhece a Alfredo Gobbi (filho), um de seus grandes amigos e parceiros de boêmia, e ao Ciriaco Ortiz, seu primeiro guia sobre fraseado musical e técnica do bandoneón. Depois vai sendo marcado ao fogo com mestres como Pedro Maffia ou Pedro Laurenz em uma peregrinação por várias orquestras. Durante 1931 aventurou-se brevemente no grupo de Juan Maglio Pacho, e em meados deste mesmo ano voltou a se reunir com Ortiz, dentro da orquestra “Los Provincianos” criada pelo selo Victor somente para gravações. Mais tarde integrou as formações de Julio De Caro (orquestra gigante de 1932), com Angel D’Agostino, Juan D’Arienzo, Alfredo Attadía, Luis Petrucelli, Típica Víctor, Típica Porteña, e faz parte do “Cuarteto del 900” com o acordeonista Feliciano Brunelli. A última parada antes de lançar seu próprio conjunto foi a grande orquestra do pianista e compositor Juan Carlos Cobián. Talvez inconscientemente, a esta altura já estava prenunciando o estilo que alguns anos mais tarde iria abalar as estruturas do tango. Nesta fase de sua carreira também vale a pena mencionar as suas participações nos filmes Los Tres Berretines em 1933, Radio Bar em 1936 e Muchachos de la Ciudad em 1937.

No referido filme Los Tres Berretines, o argumento gira em torno de três paixões dos porteños: tango, futebol e turfe. Troilo, ao longo de sua vida, foi um membro das três categorias. Gallina confesso, fã caracterizado e amigo de figuras do futebol como Adolfo Pedernera ou José Manuel El Charro Moreno, também era um visitante freqüente dos hipódromos. Lembro-me de uma anedota que me contou o mestre Carlos Figari (um dos pianistas da orquestra de Troilo): “Descobri o hipódromo com o Gordo, que me levou pela primeira vez. Naquela tarde, em uma corrida fizemos uma aposta sem o cavalo que montava Irineo Leguisamo. Quando estavam na reta final, vejo que Pichuco dá uma tapa na sua testa, balançando a cabeça. Perguntei: Qué acontece? Ele apontou para a pista. Ai, no lado da fora, um cavalo corria passando a todos os outros. Era o cavalo de Leguisamo.”

Reunindo alguns músicos da dissolvida orquestra de Ciriaco Ortiz, em 1º de Julho estreou na frente de seu conjunto: El Pulpo Orlando Goñi no piano; Juan Fassio (após Enrique Kicho Diaz) no baixo; Roberto Gianitelli, Juan Miguel Toto Rodriguez e ele mesmo na secção dos fueyes; Reynaldo Nichele, José Stilman y Pedro Sapochnik em violinos, e quem seria seu cantor emblemático: El Tano Francisco Fiorentino. Eles estrearam no cabaré Marabú de Buenos Aires, onde um par de sinais anunciaram:

“Hoy debut: Aníbal Troilo y su orquesta” – “Todo el mundo al Marabú / la boite de más alto rango / donde Pichuco y su orquesta / harán bailar buenos tangos.”

O conjunto, um octeto que tocava a la parrilla (sem ensaio estrito), tinha arranjos musicais simples e orientados para a dança, a principal fonte de subsistência das orquestras dessa época. Apesar da influência que ao final dos anos ‘30 irradiava o som dançante da orquestra de D’Arienzo, apoiado no trabalho de Orlando Goñi e Kicho Díaz começou a se gestar o embrião do que na próxima década seria definido como sonido troileano (o som característico de Aníbal Troilo).  E vale a pena fazer uma parada em um dos arquitetos dessa marca, pilar da orquestra: Orlando Goñi.

Taciturno, boémio, alguém pintou a sua figura dizendo que tinha olheiras de filme mudo. Considerado o criador do piano moderno no tango, tinha uma marcação esquerda singular, cheia de refinamentos, e uma grande habilidade para levar ao piano as frases que Pichuco cantava desde seu fueye. Longe de um idioma musical “quadrado”, havia se formado através de múltiplas experiências orquestrais e tendo como influência maior o pianista Francisco De Caro. Permaneceu seis anos na orquestra de Troilo, com a qual gravou 71 composições. Depois formou seu próprio grupo convocando verdadeiros talentos como Roberto Di Filippo ou Eduardo Rovira. Admirador do pianista de jazz Teddy Wilson, Goñi seria referência para grandes músicos do gênero, marcando com seu estilo e maneira de interpretação aos evolucionistas de seu tempo. Queimando rapidamente a sua vida boêmia, a morte chegou a visita-lo quando tinha apenas 30 anos. A história oficial diz que, sentindo-se muito doente, foi para a outra beira do Rio de la Plata e morreu na casa de um amigo uruguaio. Mas, alguns anos atrás, ouvi outra versão não confirmada em boca de um velho bandoneonista que viveu aqueles inesquecíveis anos ‘40: “Orlando Goñi … Grande músico! E que elegância tinha! Muito bum. Uma noite, após o desempenho, foi para um quarto de hotel com uma mina. Na manhã seguinte foi encontrado afogado na piscina no andar de baixo.”

A grega Ida Dudui Zita Kalacci foi vítima de um sequestro quando era pequena, e foi resgatada por sua avó Zafira, uma nativa de Rhodes. Troilo a conheceu quando trabalhava como balconista em uma boate de Buenos Aires. Era o início de uma relação tempestuosa que virou-se toda ternura até o fim, com casamento civil em 1938. O homem de boémia e noites eternas, capaz de sair e comprar um refrigerante com saco de recados e retornar em três dias… sem refrigerante, encontrou a companheira de sua vida no mesmo ano de sua chegada as gravações, quando gravou para o selo Odeón os tangos Comme il Faut de Eduardo El Tigre Arolas (um músico à frente do seu tempo) e Tinta Verde de Agustín Bardi. Duas composições que de alguma forma já prenunciavam um caminho de força expressiva destacando elementos melódicos. Envolto em conflitos com a empresa gravadora, não voltaria a gravar até 1941, para a etiqueta Víctor.

Uma grande inovação da orquestra de Troilo foi o papel do vocalista, que desde a morte de Gardel era apenas um mero cantor de refrões. A partir de Francisco Fiorentino, os cantores começaram a interpretar quase a totalidade das letras dos tangos, modalidade que depois adotaram as outras orquestras. Embora com uma voz fininha e rouca, o Gordo tinha uma entonação precisa e foi um verdadeiro mestre de cantores. Vários deles viveram o seu melhor tempo enquanto permaneceram na orquestra de Troilo, e outros usaram a experiência como excelente ponto de partida para suas carreiras solistas. Muitas das melhores vozes do gênero cantaram com Pichuco. Pela orquestra passaram Amadeo Mandarino (desde 1939 até 1941), Francisco Fiorentino (37-44), El Tano Alberto Marino (43-46), El Gallego Floreal Ruiz (44-48), o El Gaucho Edmundo Rivero (47-49), Aldo Calderón (48-50), Angel Cárdenas (56-61), El Polaco Roberto Goyeneche (56-64), Jorge Casal (50-55), Pablo Lozano (55-56), Carlos Olmedo (55-56), Raúl Berón (51-54), Roberto Rufino (59-65), Tito Reyes (64-74), Elba Berón (61-63), Nelly Vázquez (63-66), y Roberto Achával, sua última voz. Todos eles brilharam com Pichuco, que reconheceu ao cantor com um instrumento mais do conjunto: “Quando entra o cantor, a orquestra corpo a terra”, disse sempre ele, e embora isso em certa medida tenha originado alguns estrelatos e contribuído para o declínio da dança do tango, foi um princípio respeitado em toda a sua vida.

Em meados de 1939 a orquestra de Troilo fazia suas performances no café Germinal da Avenida Corrientes. Um garoto de 18 anos nascido na cidade costeira de Mar del Plata estava aí todas as tardes e, depois, de volta à pensão onde morava, estudava e traduzia em seu bandoneón tudo o que eu tinha ouvido no café, especialmente o trabalho do lendário Orlando Goñi ao piano. O garoto, chamado Astor Piazzolla, teve a grande oportunidade que ansiava quando em uma sexta-feira uma doença do bandoneonista Toto Rodriguez deixou a orquestra com uma lacuna preocupante frente das performances do fim de semana. Apresentado por seu amigo Hugo Baralis, violinista da orquestra, e sabendo o repertório de cor, deu uma espécie de exame e imediatamente se juntou ao grupo.

Nativo da turística Mar del Plata, mas criado em um bairro violento de Nueva York, Astor era um personagem que não se encaixa totalmente. Recordando aqueles dias, disse Hugo Baralis: ”Era um bicho raro nesse ambiente… Falava metade de inglês, um quarto de castelhano e outro quarto de lunfardo. Além disso, e para piorar a situação, havia tocado com Gardel, mas falava de Bach”. Vivia dentro dessa cultura da noite e cabarés, e compartilhava mesas com pessoas como Homero Manzi ou Enrique Cadícamo, mas amava a luz do dia e acordar cedo. Ficaba entediado com as conversações sobre minas (mulheres), burros (cavalos de corrida) o escolaso (apostas em geral), mas era capaz de entrar em uma mesa de pase inglês (jogo com dados por dinheiro) ou bater a qualquer jogando ao bilhar. Era muito jovem e estava em um lugar que para muitos outros músicos era um objetivo máximo onde poderiam ficar toda a sua vida, mas ele sempre tinha vontade de ir para a frente. Estudava harmonia e contraponto com o compositor de vanguarda Alberto Ginastera, quem falava-lhe da música como arte totalizadora e interessava-lhe na pintura e na literatura. Talentoso, sempre pensando em bagunças (como colocar fogos de artifício em lugares estratégicos dos cabarés), amante das piadas, por causa de seu hábito de andar de um lado para o outro e talvez também por seu olhar penetrante, foi apelidado O Gato por Troilo, que o amava e lhe permitiu fazer coisas que despertaram ciúme em outros músicos, como assumir o papel de líder e primeiro bandoneón quando ele não podia tocar, ou sentar-se ao piano quando Orlando Goñi estava bêbado demais para ficar de pé.

Piazzolla começou a fazer arranjos para a orquestra quando recebeu a permissão do Troilo, devido a uma indisposição do arranjador titular. Pichuco pediu-lhe fazer o que pudesse com Azabache, um candombe que tinham que tocar em um concurso da Rádio El Mundo. As escalas ascendentes nos violinos e as passagens de contraponto causaram rostos estranhos, mas depois o arranjo levou o primeiro prêmio. A partir daí, Troilo continuou permitindo-lhe fazer arranjos. Em eles Astor derramava seus estudos e canalizava toda a sua energia criativa, permanecendo inalteradas só as excelentes peças para piano de Orlando Goñi. Seus trabalhos, cada vez mais complexos e frequentemente censurados pela famosa borracha do Gordo, guardião de um estilo e do dinheiro que deixavam as danças, forçavam a estudar. E o estudo, normalmente não gosta o músico que está acostumado a tocar de ouvido.  Assim, embora apoiado por Goñi, Kicho Díaz e Hugo Baralis, que mesmo ajudaram com seus experimentos musicais, foi rejeitado pelos membros mais convencionais da orquestra, ganhando inimigos também fora dela. Alguns camaradas perguntavam-lhe se era louco ou se acreditava no Teatro Colón (o cenário máximo de música clássica na Argentina). Outros preferiram manchar suas folhas de estudos de música nos camarins, como vingança. E em o público, embora houvessem pessoas que com as novas orquestrações, ficassem mais próximas ao palco para ouvir com atenção, a maioria retirava-se entre assobios, jogavam coisas ao palco ou faziam paródia de passos de balé. Imerso em uma luta contra o conservadorismo, Astor respondeu de diferentes maneiras: tocando o bandoneón, discutindo, e às vezes também com socos. Depois de alguns anos seus estudos, seus gostos musicais ecléticos e suas novas preocupações culturais foram intensificando sua rejeição pelo mundo da noite e os cabarés, e incomodando cada vez mais à Troilo com seus incidentes e brigas.  “Gato, tu é um demônio”, costumava dizer-lhe, e até apelou a sua esposa: “Pare ao Astor, está entornando isto em uma orquestra sinfônica.” A paciência do Gordo foi se esgotando, mas de qualquer maneira, uma vez produzida a remoção de Piazzolla (que foi atrás de uma oferta de emprego dos já distantes da orquestra Fiorentino, Goñi e Baralis), Pichuco se sentiu ferido. Até a sua mãe assumiu responsabilidades em o assunto e chamou de ingrato ao Astor, vaticinando-lhe um futuro de arrependimento. Mas O Gato, reconhecendo o quanto ele tinha aprendido com Pichuco, levantando vôo, disse:. “Deixei a orquestra  porque queria ser eu mesmo (…) Quando andava com Troilo, tentei imitar muitas das suas coisas. Aprendi as armadilhas de tango, essas armadilhas intuitivas que me ajudaram mais tarde. Não é possível definir tecnicamente, são maneiras de tocar, sentimentos; é algo que vem de dentro, assim, sem voltas. Eu era no início um dos muitos bandoneones que tinha Troilo na orquestra, mas queria ser o primeiro e cheguei a ser. O Gordo confiava em mim.” Piazzolla atuou como músico na orquestra até 1944, mas continuou trabalhando como arranjador. Ao longo dos anos cultivou uma estranha relação de amor e ódio com Troilo, uma amizade marcada por lutas entre duas pessoas que, em última análise, queriam-se e admiravam-se um ao outro.

Os anos quarenta (para o tango a fase excepcional do ciclo evolutivo que começou no início do século), nasceu com dois eventos do ano 1935: a morte de Carlos Gardel e a entrada em cena da nova orquestra de Juan D’Arienzo. Ambos tiveram o poder de mover o estatismo em que o tango ficava, na encruzilhada de morrer com o ídolo ou seguir para frente. Felizmente triunfou a segunda opção, algo que o gênero não foi capaz de fazer, pelo menos em grande escala, décadas depois. D’Arienzo optou por renovar, mas olhando para trás. Revitalizou as velhas formas e apontou para a dança com um estilo monótono, rápido e eficaz. Sua orquestra foi musicalmente elementar, quase sempre tocando em uníssono com passagens excepcionais de piano ou violino solo, acrescentando a isto a sua negligência do rosto poético, com letras medíocres e de um humor duvidoso que seus fãs celebraram como parte do show desse home, que liderava a sua orquestra movendo-se como um espantalho e afundando o índice na barriga de seus cantores. A orquestra de Troilo tomou outro caminho, de acordo com a renovação que adoptaram muitos diretores dos anos ’40: menos intuição e mais estudo, preparação e qualidade técnica. Quando entram em cena os arranjos do mencionado Piazzolla e José Pepe Basso substitui ao Goñi no piano, a orquestra do Gordo torna-se mais estável e define completamente seu estilo, sua personalidade, seu próprio som, equidistante de outros vértices bem sucedidos do espectro do tango orquestral. Sendo uma das mais respeitadas, seguida por uma enorme multidão, compartilhou seu tempo com o pulso epiléptico pontilhado de mau gosto de D’Arienzo, a estética ordinária de Alfredo De Angelis em seu aspecto instrumental, o elegante tango de salão de Osvaldo Fresedo, o altivo e austero de Carlos Di Sarli, as diferentes linhas de outros evolucionistas decareanos (influenciados pelo estilo inaugurado por Julio de Caro), e uma centena de orquestras mais. Se ao início do século vinte a chamada “Guardia Vieja” destacou os nomes de Roberto Firpo e Eduardo Arolas, os anos do cabaré alvearista (presidência de Marcelo T. De Alvear) os de Julio De Caro e Osvaldo Fresedo, a década de ouro dos anos ‘40 do tango teria dos nomes dominantes da cena: Aníbal Troilo e Osvaldo Pugliese, outro grande mestre que abriu caminhos com seu estilo e cuja influência marcou decisivamente a muitos músicos do gênero.

Como diretor de orquestra, Pichuco começou a andar os anos ‘40 como decareano puro, com rigidez na distribuição de papéis dentro da orquestra, mas pouco a pouco foi se inclinando em direção a formas mais democráticas, com harmonias e melodias em qualquer linha de instrumentos, algo que poderia desenvolver por a alta qualidade dos músicos que sempre recrutou. Sua orquestra foi uma verdadeira planta de exportação de talentos. Ela foi composta por violinistas como Hugo Baralis, David Diaz, Alberto García, Nicolás Albero, Juan Alzina, Salvador Farace, Carlos Piccione, Antonio Agri, Fernando Suarez Paz, José Votti ou Carmelo Cavallaro; bandoneonistas como Astor Piazzolla, Eduardo Marino, Fernando Conte, Domingo Matio, Raúl Garello ou Ernesto Baffa; violistas como Simon Zlotnik ou Cayetano Giana; violoncelistas como Alfredo Citro, José Bragato ou Adriano Fanelli; contrabaixistas como Enrique Kicho Díaz ou Rafael Del Bagno; e pianistas que inevitavelmente viraram em diretores de orquestra: Orlando Goñi, José Pepe Basso, Carlos Figari, Osvaldo Manzi, Osvaldo Berlingieri e José Colángelo. Como O Gordo atribuía grande importância aos arranjos musicais, também contou com nomes de luxo nesse ponto: Héctor María Artola, Argentino Galván, Astor Piazzolla, Julián Plaza, Ismael Spitalnik, Oscar de la Fuente, Alberto Caracciolo, Eduardo Rovira, Emilio Balcarce, Héctor Stamponi e Raúl Garello. Todos eles sujeitos à célebre borracha do diretor. Diz a lenda que só esquivou a borracha o violinista Emilio Balcarce com o arranjo impecável de seu comovente tema La Bordona. Troilo, grande instrumentista, não era arranjador, mas sabia exatamente o que queria.

O Gordo participou ao longo de 41 anos de experiência em oito filmes. A os três já mencionados e devem ser adicionados El Tango vuelve a París (1948), Mi Noche Triste (1952, versão libre sobre a vida do dramaturgo, músico e poeta Pascual Contursi), Vida Nocturna (1955), Buenas Noches Buenos Aires (1964) y Esta es mi Argentina (1974). Em teatro, participou das obras El Patio de la Morocha (1953), Caramelos Surtidos (1960), Tango en el Odeón (1963), Troilo 69 (1969) y Simplemente Pichuco (1975). Destas, a que merece um longo parágrafo por seu significado na música popular, é El Patio de la Morocha, estreada no atual Teatro Alvear (nesse tempo chamado Enrique Santos Discépolo).

Foi um sucesso por 2 temporadas e 500 representações. Troilo, diretor musical, apresentou uma orquesta de 30 músicos com quatro cantores. A orquestração era de Astor Piazzolla e os textos de Cátulo Catunga Castillo. En uma das partes da obra, Pichuco e Roberto Grela representavam a Eduardo Arolas e um guitarrista anônimo dos tempos fundacionais do tango. Com fueye e guitarra interpretaram o tango La Cachila, de Arolas. Pela ovação recebida, tiveram que repetir o tema algumas vezes, já que era o único que tinham testado. Esta foi a origem do Quarteto Troilo-Grela, ponto de referência obrigatória em qualquer antologia do gênero, da música popular Argentina ou simplesmente da música.

O quarteto original era composto por Aníbal Troilo no bandoneón, Roberto Grela na guitarra, Edmundo Porteño Zaldívar no guitarrón y Enrique Kicho Díaz no contrabaixo. Este fenomenal conjunto gravou doze jóias entre junho de 1955 e setembro de 1956. Em 1962 Pichuco e Grela voltaram a se reunir e deixaram outras dez obras mais, acompanhados por Roberto Lainez na guitarra, Ernesto Báez no guitarrón y Eugenio Pro no contrabaixo.

A orquestra de Troilo, exceto um um pequeno período do ano ‘55, onde quase não gravou a não fez apresentações ao vivo, atravessou três décadas no mais alto nível graças ao trabalho de seu diretor e seus notáveis arranjadores, músicos e cantores.

Em 1942 adicionou a poderosa e lírica voz de El Tano Alberto Marino, e em 1944 contratou a El Gallego ou El Tata Floreal Ruiz, uma síntese de bom gosto, destituído de sensacionalismos ou exageros para cantar, do mesmo modo que uma pessoa conversa com um amigo tomando um café. Depois chagaram outras vozes originais: Raúl Berón, um magro que parecia nascido para se entrelaçar em o estilo de Troilo; El Feo ou El Gaucho Edmundo Rivero, grave, impondo, a grande voz de Sur ou La Última Curda; e El Polaco Roberto Goyeneche, esse grande cantor que tornou-se um personagem famoso em tempos em que já quase não tinha voz.

Em meados dos anos ‘60, a década de ouro do tango estava caminho de ser so uma lembrança, como os carnavais porteños. O rock e o boogie chegavam com força esmagadora de fora e, localmente, os protagonistas do programa de TV El Club del Clan, patrocinados pelas empresas gravadoras entravam no palco da música popular argentina como um elefante numa loja de porcelanas. Seu sucesso arrebatador foi tão inegável como o mau gosto e lamentável nível musical de muitos de seus membros. Felizmente e para equilibrar a balança, a década dos ‘60 mostrou um nível imbatível de qualidade e inovação na música folclórica, talvez como nunca mais viveu o país, graças criadores,  poetas e músicos inesquecíveis.

Nesse contexto, as orquestras de tango desapareciam atravessadas por os maus tempos econômicos, os bares fechavam ou já não tinham espaço exclusivo, e os expoentes do gênero sobreviviam na forma que poderiam. Além de Julio Sosa, uma espécie de lutador tanguero fora de tempo que atraia modestas multidões, do Quinteto Real, do Quarteto Federico-Grela e de orquestras como as de Osvaldo Pugliese ou Horacio Salgán, o tango como um todo não conseguiu reeditar a transformação que tinha ocorrido nos anos ‘40. A maioria dos tangueros escolheram o estatismo e sublinharam a seu grande perfil fascista e reacionário, considerando a os cultuadores do rock como inimigos e as propostas de renovação do tango como uma traição à causa. E assim ficaram… recusando-se a evolução, anacrônicos e com apliques vermelhos sobre as cabeças. Mas é claro que o tempo é implacável com todos. Alguns meninos do rock que então zombavam deles, hoje são tão ou mais ridículos que aqueles aos quais criticaram. É suficiente ouvir os shows de avivamento do velho conjunto de rock Los Gatos, um autêntico lixo.

Naqueles anos, enquanto Eduardo Rovira e Piazzolla inventavam outra história aprofundando o fosso com o tango tradicional, Pichuco manteve estoicamente sua orquestra, completamente renovada com a chegada do pianista Osvaldo Berlingieri, mas ao mesmo tempo foi se retirando para formatos musicais menores. Primeiro com seu parceiro Roberto Grela e depois fundando o Nuevo Cuarteto para tocar em bares como o famoso Caño 14. Com este conjunto, formado por ele no bandoneón, Ubaldo de Lío na guitarra, Rafael del Bagno no contrabaixo y Osvaldo Berlingieri no piano, em 1968 gravou onze tangos y uma milonga para o selo gravador Víctor. O Bandoneón Maior de Buenos Aires, uma lenda viva, no final daquela década deixou de reger a orquestra com o seu instrumento.

Em 1970 são gravados em um disco dois duetos de bandoneón Troilo-Piazzolla: El Motivo, tango de Juan Carlos Cobián, e Volver, de Gardel. Em 1971 Pichuco inaugurou a praça Homero Manzi, em comemoração do vigésimo aniversário da morte do grande poeta, seu parceiro em imortais criações de música e poesia, e o 24 de junho do mesmo ano sua orquesta registra a última de suas 449 gravações com a voz do Polaco Goyeneche. Embora seus problemas de saúde se multiplicaram, nesse registro ainda pulsam as luzes de grande instrumentista e diretor, já instalado de forma permanente no panteão dos grandes músicos argentinos. Adicionando registros em duetos e quartetos, existem um total de 485 gravações do Gordo editadas, embora presumivelmente há outras que nunca foram tornadas públicas.

Infelizmente, quase não há imagens de vídeo dos melhores momentos de Troilo e sua orquestra, algo que também acontece com outros grandes músicos do tango. Grande parte do material que pode ser encontrado no Youtube corresponde à última etapa, quando sua saúde estava devastada.

A peça teatral Simplemente Pichuco estreada o 3 de abril de 1975 no desaparecido teatro Odeon de Buenos Aires, onde Troilo se apresentava com quarteto e orquestra, não teve o impacto esperado. Alguém ligado ao espetáculo comentou neste tempo: “Vieram poucas pessoas e o Gordo no queria más Lola”. Y assim foi. Uma noite, após do desempenho no teatro, apareceram duas asinhas em suas costas, e partiu. Morreu o 18 de maio de 1975, em o Hospital Italiano, vítima de um acidente vascular cerebral e ataques cardíacos subseqüentes. A pior doença para um bandoneonista, osteoartrite, mais de cuarenta anos de noche, escabio, faso y merca (noite, álcool, cigarro e droga) passavam-lhe a última conta. Naqueles dias, um poeta disse: “O bandoneón caiu de suas mãos.” Ciente de sua morte, Astor Piazzolla compôs em sua honra a Suite Troileana, uma emoção profunda feita requiem dividido em quatro partes que referem às paixões do Gordo: Bandoneón, Zita, Whisky y Escolaso. Precisou um disco inteiro para testemunhar toda a admiração e carinho que sentia pela pessoa que definiu como “um monstro da intuição.”

¿Quem não apitou ou cantarolou uma composição do Dogor? Mesmo aqueles que zombam da velha estética do tango ouvem respeitosamente um tango do Troilo. Deixou um legado de 64 obras, quase todas inesquecíveis. Trabalhou com as melodias de forma excepcional, com poetas como Enrique Cadícamo, Catulo Castillo, José María Contursi, o Barba Homero Manzi, Homero Expósito, Jorge Luis Borges ou Ernesto Sábato, criando com eles obras como Toda Mi Vida (1941), Barrio de Tango (1942), Pa’ que Bailen los Muchachos (1942), Garúa (1943), María (1945) Romance de Barrio (1947), Sur (1948), Che, Bandoneón (1950 ), Uma Canción (1953), La Cantina (1954), La Última Curda (1956) Desencuentro (1962), etc. (tinha uma estreita amizade com Enrique Santos Discépolo, mas não registrou nehuma obra com ele). A morte de Homero Manzi em 1951 mergulhou-o em uma profunda depressão que durou mais de um ano. Em homenagem ao Homero escreveu um dos maiores tangos de todos os tempos: Responso (que gravou, mas sempre se recusou a tocar ao vivo). Manzi, o homem da disjuntiva “tornar-se um homem de letras ou fazer letras para os homens”, era seu grande amigo.

Em relação a obras instrumentais, entre outras e além do citado Responso, legou A Pedro Maffia, Milonguero Triste (dedicada ao violinista e diretor de orquestra Alfredo Gobbi), A La Guardia Nueva, La Trampera, etc.

Eu tinha dez anos quando o Gordo morreu. Escrevo com base no que eu poderia ler, por testemunhos de seus contemporâneos, pelo fato de ter muito ouvidas suas gravações desde criança, ter muito estudadas suas composições na pauta musical, e porque tive a sorte de conhecer pessoas próximas a ele. Lamento não tê-lo visto ao vivo, algo que consegui com outro grande mestre, Don Osvaldo Pugliese.

Uma pasta no meu computador está marcada “Troilo”. Aí tenho coisas que me fazem sentir bem. Fiore com Tristezas de la calle Corrientes e El Bulín de la calle Ayacucho: o Tano  Marino com Tres Amigos, Com mi Perro, Después y Garras; o Tata Floreal Ruiz com Naranjo en Flor, Romance de Barrio, Marioneta e Flor de Lino; os três misturados em duetos para cantar milongas como Cimarrón de Ausencia ou valsas como Soñar y Nada Más, o Feio Edmundo Rivero com La Última Curda e Sur; Jorge Casal com La Cantina; Raúl Berón com Discepolín e Che, Bandoneón; o Polaco Goyeneche com Un Boliche e La Violeta. Também tenho históricos temas instrumentais: Quejas de Bandoneón, La Bordona, Lo que Vendrá, A Mis Viejos, Danzarín, Responso. E, obviamente, todos os registros do Cuarteto Troilo-Grela (gastei velhos discos de vinil 78 rpm, muitos cassetes, e se o formato mp3 também pode ser gastado, acho que vou ter que construir uma nova pasta).

Eu não acredito em magia ou mistério para explicar a existência de um músico como ele, nem para explicar nada. Vamos deixar a necromancia para encontrar uma explicação quando acontece que alguém ganhar uma aposta quadrifeta com vinte cavalos debutantes no hipódromo. O Gordo cozinhou seu guisado com fogo lento, tocando muito, fazendo ligações com os grandes de sua época, para ao devido tempo ser todos eles e ninguém, porque havia chegado a ser ele mesmo. Cercou-se com os melhores quando teve que traduzir suas idéias musicais, sempre dentro de um equilíbrio, sem efeitos fáceis e com muito bom gosto. Criador inspirado e notável intérprete das obras de outros criadores, muitas obras transformaram-se em clássicos depois de passar por sua orquestra. Fez uma das maiores contribuições para a nossa música popular, e também deixou milhares de anedotas de bom homem, de amizades à prova de balas, e de noites sem fim.

E lá está, para sempre, ligeiramente inclinado, os olhos em algum abismo na frente, tocando seu bandoneón profundo e eterno. Obrigado, Gordo.

Palavras

 

Eu protestei-lhe: -Diga-me, por que você tem que trabalhar todas as noites com o quarteto, se nós não precisamos?

Ele disse: -E como tu pensa que vão comer Tito Reyes e seus seis filhos? Se eu não trabalho, ele não trabalha.

(Zita).

Não tenho medo de tristeza. Caminhamos juntos desde crianças.

 

-¿Está o Aníbal?

-É cicatrizando.

(Conversa telefónica entre Julián Centeya e Zita).

O conheci em um programa de TV quando tinha 12 anos. Eu cantava em bares, e nesses lugares quem mais grita é o quem mais colheita aplausos. Então, em um ensaio, quando comecei a cantar Barrio de Tango, Troilo me parou e disse: “Garoto, não grite; o tango não canta-se com o capital, canta-se com os juros”. (…) Troilo não sabia cantar, mas era mestre de canto, conhecia pouco da música mas era professor de música, e tocava pouco o bandoneón mas era mestre de bandoneonistas. Foi impressionante.

(Guillermo Fernández, cantor)

Um, não morre de uma vez, vai morrendo lentamente com cada amigo que desaparece, e assim chega um momento em que de Pichuco não queda nada.”

 

“-Tu te sente sozinho?

-Às vezes, especialmente quando estou cercado por muitas pessoas.

 

Ele tinha orelhas surdas para a calúnia e finas para a música.

(Edmundo Rivero, cantor e guitarrista)

Gostava de cozinhar. Quando fazia o molho para o macarrão, colocava “o pais” na panela: conhaque, uísque, fungos, tudo o que tinha a mão. Você comia macarrão com molho de tomate e saia de sua casa bêbado.

(Angel Cárdenas, cantor)

O Gordo tinha bom gosto até para chutar uma bola.

(Adolfo Pedernera, jogador de futebol)

Troilo é como um farol, como aquelas luzes que estão iluminando um caminho que, infelizmente, está ficando mais escuro e cheio de incertezas. Tinha muitos valores que são sintetizadas em um: a economia musical. Ele nos ensina que remover é mais importante do que abundar, graças a ele eu fiz amizade com a borracha. Com muito poucos recursos nos deixou uma arte profunda.

(Rodolfo Mederos, bandoneonista)

Pichuco fez que todos os seus cantores se tornaram em outro instrumento. Conseguiu que o cantor fosse um violino ou um piano mais na orquestra.

(Ben Molar, autor, compositor, produtor musical, promotor artístico)

Fui tocada quando ele disse:“Estou tão ruim, porque estou bem. Tenho um desejo de morrer que não posso mais.

(María Ester Gilio, a jornalista que fiz o último relatório com ele)

Alguém disse uma vez que eu deixei meu bairro. Quando? Mas quando! Se eu estou sempre chegando!

(Aníbal Troilo na poesia “Nocturno a mi barrio”)

-Como tu esta, Gordo?

-Bom.

-O que tu vai fazer?

-Não sei.

Você sabe o que você tem que fazer?

-Não.

-Nada.

(Diálogo entre Enrique Santos Discépolo e Troilo).

A orquestra ensaiava todos os dias às quatro da tarde no cabaré Tibidabo. E nas performances da noite tinha uma disciplina estética onde os músicos tocavam sem uma pontuação no púlpito. É que eles sabiam 120 obras de cor. O Gordo disse que era necessário distinguir os trabalhos do músico no palco: leitura e expressão. Se os músicos sabiam tudo de cor, o único trabalho que tinham que fazer era expressar.

(Horacio Ferrer, poeta)

Não há tango velho ou tango  novo. O tango é um só. Talvez a única diferença é em aqueles que fazem bem e os que fazem mal.

 

No cabaré Marabú, Troilo nos disse: “Vamos tocar suave, porque o público esta falando muito forte”. Ao fazer isso, a conversa geral começou a diminuir, até que ninguém falou. Só então começamos a tocar ao máximo.

(José Votti, violinista da orquestra)

 

-Está o Gordo?

-Chamá-lo mais tarde, que é nunca.

(Conversa telefónica entre Julián Centeya e Zita).

A as pessoas temos que contar-lhes, não cantar-lhes.

(Conselho para os cantores).

De Buenos Aires teria que dizer muitas coisas, e muitas não sei como dizer-lhes. Mas observe o seguinte: eu sou grato por ter nascido em Buenos Aires.

 

A rua é o melhor lugar de todos. Você aprende. O início aprendizagem, da educação, é em tua casa. Mas na rua você aprende a viver… Olha para mim, tudo o que eu aprendi, o pouco ou estranho que aprendi, aprendi na rua.

 

Eu tocava em pé, muito perto de sua mão direita. Nunca ouvi ele perder uma nota. Tinha um “touche” de grande artista. Chegava sempre, incrivelmente, aos ligados e os pianíssimos.

(José Votti, violinista da orquestra)

Há coisas que têm de ser fundamentais em um homem: a cordialidade e respeito. Respeito acima de tudo. Eu tinha 17 anos e trabalhava em um cabaré. Você sabe como chamava as mulheres dançarinas? Senhora. Chamava-lhes senhora.

 

Eu sei que as pessoas querem de mim. Não sei se sou um herói, não sou tão vaidoso a ponto de acreditar isso. Buenos Aires? Não, não sou Buenos Aires. Mas eu gostaria de ser a metade de um quarteirão de um bairro qualquer da minha cidade.

 

-¿Está Aníbal?

-Mas você não vê que as pálpebras são abaixadas?

(Diálogo através do intercomunicador entre Julián Centeya e Zita. Ela fez menção das “pálpebras”, as cortinas do apartamento onde moravam, na rua Paraná).

 

Há algumas composições que são minhas preferidas, as que mais quero: Sur e Responso. O tango Responso saiu uma noite em minha casa. Havia pessoas lá, jogando bacará e eu não sei… Senti como se eu não estava lá. Eram as 4 da manhã, e de repente fui para o meu quarto e comecei a tocar algumas notas, até que saiu Responso. Eu acho que foi a melhor homenagem que poderia dar ao Homero.

Quando voltei a Buenos Aires abri com meu conjunto eletrônico um belo lugar chamado La Ciudad. Zita veio uma noite e deu-me um dos bandoneones que teve o Gordo. Foi uma das mais belas emoções da minha vida.

(Astor Piazzolla. Por esse gesto Zita seria violentamente atacada por os meninos tradicionalistas, que acusaram a ela de louca e lembraram seu passado como dançarina de cabaré, entre outras sutilezas).

Se você ouve ao Troilo desde sua origem até o final, vê uma evolução acentuada, constante, em sua maneira de expressar música e de se relacionar com ela. Piazzolla, em vez disso, começou em quinta marcha e permaneceu sempre em quinta. (Hermenegildo Sábat, desenhista).

O tom das pessoas tristes é Re menor. Re, Fa, La. É o tom dos pobres, porque ele tem cor cinzenta. As pessoas que sofrem é tuda in Re menor.

 

Um dia terminamos de comer e ele foi com amigos no bar em frente. Tinham tomadas algumas garrafas, estavam alegres e Rufino começou a cantar. Chegou a cana e os levou a todos para a delegacia 13ª. Quando estavam no Departamento de Polícia, o Gordo perguntou ao Paco:

-Paco, a quem temos que retirar daqui?

-A ninguém. Os presos somos nós.

(Zita)

 

O sacrifício nunca é desistir do que se é. O verdadeiro sacrifício é manter o que se é.

 

Um dia estávamos no estádio Luna Park e as pessoas começaram a pedir-nos para tocar juntos. O Gato se aproximou, colocou um pé no lado da cadeira e disse-me: “canta”. Você não pode imaginar as coisas que fiz o fueye do Gato aqui no meu ouvido. Ninguém toca bandoneón como Piazzolla.

 

Eu não sou músico, sou tanguero. Você me imagina tocando a flauta?

 

Por que eu deveria ir para o Japão, se lá não conheço ninguém?

(Quando ele foi oferecido para ir para Tóquio, onde o tango teve muito sucesso nos anos setenta).

-Ernestito, Abre o armário e toma todas as camisas.

-Para que, Gordo? São tuas! Pare de brincar…

-E para que preciso delas? Não é frio lá acima.

(Diálogo com o bandoneonista Ernesto Baffa, em 1975, o ano da sua morte).

Dizem que eu fico animado com muita frequência, e que choro. Sim, é correto. Mas eu nunca faço isso por coisas sem importância.

 

Um dia fumos para a prisão com Julián, a tocar para os presos. Julián disse: “-Entre vocês que estão fora e nós que estamos dentro, vamos falar um pouco.” Os chorros choravam.

-Eu não entendo. Eles estavam fora?

-Sim, fora da lei.

(Diálogo com a jornalista Maria Esther Gilio)

 

Hoje vai tocar como Deus. Sempre toca como Deus quando anda perto do Diabo.

(Zita).

Troilo e Zita viveram muitos anos a poucos metros da intersecção de Avenida Corrientes e Paraná, em um apartamento com varanda e vista para a rua onde Pichuco estava muito bem e recevia a seus amigos. Mas uma vez eles se mudaram para outro prédio, apenas a dez quarteirões desse lugar que ele amava. Um dia Zita chegou ao novo apartamento e encontrou ao Gordo sentado na soleira de entrada e chorando. Preguntou-lhe o que tinha acontecido. Ele respondeu: Quero voltar para Buenos Aires.

(Horacio Ferrer)

-Gordo, tu vai estrear meu tango Naranjo en Flor?

-Pergunte-lhe ao Floreal Ruiz.

O poeta Homero Expósito então telefonou para o cantor.

-Vocês vão estrear o tango?

-Há 23 dias estamos com o Gordo, os dois sozinhos, buscando a sua forma definitiva.

¿Tu sabe quem foi Aníbal Troilo? Ele era tu, tocando o bandoneón.

(Astor Piazzolla em uma carta que ele escreveu para Carlos Gardel em 1978)

Alguns vídeos e áudios recomendados

La Cantina (vídeo). Tango de Aníbal Troilo e Cátulo Castillo.

Do filme “Vida Nocturna” (1955). Orquesta de Anibal Troilo com voz de Jorge Casal. O grande arranjo orquestral é de Astor Piazzolla

https://www.youtube.com/watch?v=UuO1j818vCU

La Trampera (vídeo). Milonga de Aníbal Troilo.

Do filme “Buenas Noches Buenos Aires” (1964). Toca o quarteto Troilo-Grela e dançam Beba Bidart e Tito Lusiardo. É a mesma cena que na peça teatral “El Patio de la Morocha” gerou o lendário quarteto.

https://www.youtube.com/watch?v=YLPrKYrcbsM

Nocturno a mi Barrio (vídeo). Música e letra de Aníbal Troilo.

Aníbal Troilo em recitado e bandoneón, Aníbal Arias em guitarra elétrica. Apresentação dentro de uma bem-sucedida novela da televisão argentina, em fines dos anos ‘60.

https://www.youtube.com/watch?v=JOFEGjl14Y8

El Motivo (áudio). Tango de Juan Carlos Cobián e

Duo de bandoneones Aníbal Troilo – Astor Piazzolla.

Palomita Blanca (áudio). Vals de Anselmo Aieta e Francisco García Jiménez.

Quarteto Troilo – Grela.

https://www.youtube.com/watch?v=bUEQ_Ju0YgI

A Pedro Maffia (áudio). Tango de Aníbal Troilo.

Quarteto Troilo – Grela.

https://www.youtube.com/watch?v=MOXUiikUy-E

Responso (áudio). Tango de Aníbal Troilo.

Orquestra de Aníbal Troilo

https://www.youtube.com/watch?v=ip8ppIK_4RE

La Bordona (áudio). Tango de Emilio Balcarce

Orquestra de Aníbal Troilo

https://www.youtube.com/watch?v=dunHfZczZPo

Pa’ que bailen los muchachos (áudio). Tango de Aníbal Troilo e Enrique Cadícamo

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Francisco Fiorentino.

https://www.youtube.com/watch?v=1HJTCpB3dNU

Toda mi vida (áudio). Tango de Aníbal Troilo e José María “Catunga” Contursi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Francisco Fiorentino.

https://www.youtube.com/watch?v=y2gg4FxpeZI

Romance de barrio (áudio). Vals de Aníbal Troilo e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Floreal Ruiz.

https://www.youtube.com/watch?v=uHAzJ4IZZM0

Marioneta (áudio). Tango de Juan José Guichandut e Armando Tagini.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Floreal Ruiz.

https://www.youtube.com/watch?v=LbLBwXIZNwk

Desvelo (áudio). Tango de Eduardo Bonessi e Enrique Cadícamo.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Floreal Ruiz.

https://www.youtube.com/watch?v=AlJkDmNzwqM

Milonga en rojo (áudio). Milonga de Lucio Demare, Roberto Fugazot e José González Castillo.

Orquestra de Aníbal Troilo com vozes de Floreal Ruiz e Alberto Marino.

https://www.youtube.com/watch?v=chzzRpdULOg

Después (áudio). Tango de Hugo Gutiérrez e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Alberto Marino

https://www.youtube.com/watch?v=BFXPHK1LjN0

Sur (áudio). Tango de Aníbal Troilo e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Edmundo Rivero.

https://www.youtube.com/watch?v=wz6VlrNcr_Y

Cafetín de Buenos Aires (áudio). Tango de Mariano Mores e Enrique Santos Discépolo.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Edmundo Rivero.

https://www.youtube.com/watch?v=AlB3XwNnQMo

Discepolín (áudio). Tango de Aníbal Troilo e Homero Manzi.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Raúl Berón.

https://www.youtube.com/watch?v=0tjIismlhwk

Un boliche (áudio). Tango de Carlos Acuña e Tito Cabano.

Orquestra de Aníbal Troilo com voz de Roberto Goyeneche.

https://www.youtube.com/watch?v=CSHn8Qfq0Tk

Glossário de termos utilizados neste texto, em ordem alfabética.

(Correspondem ao linguagem espanhol que falamos em Argentina (argentinismos), ou a gíria chamada lunfardo).

A la parrilla. Maneira de fazer música sem ensaio nem leitura de pauta, com um monte de improvisação e conhecimento do gênero.

Bandoneón. O bandoneon é um instrumento de vento com línguas e fole, relativo a konzertina de Alemanha. Tem forma quadrada e um timbre muito particular. Seu nome original em alemão é bandonion. Foi concebido na Alemanha como instrumento de línguas soltas, inicialmente utilizado como órgão portátil para executar música religiosa. Quando chegou ao Rio de la Plata da mão de marinheiros e imigrantes, foi adotado por músicos da época e ajudou a formar o som original do tango, tornando-se um verdadeiro símbolo deste. É amplamente utilizado no Rio de la Plata, particularmente em Buenos Aires, Rosario e Uruguai, ligado principalmente ao tango e outros ritmos como chamarrita ou candombe. Também é muito popular na mesopotâmia argentina para tocar chamamé, e em outras províncias do centro e norte para tocar ritmos como chacarera, zamba e outros. O músico que toca o bandoneón recebe o nome de bandoneonista.

Berretín. Capricho, desejo teimoso.

Boliche: Bar

Bordona ou bordón. Corda grave

Burros. Cavalos de corrida. “Ir a los burros” pode ser traduzido como ir para o hipódromo.

Cafetín: Bar, pequeno café.

Cana. Polícia.

Centrojás. Jogador número 5 de um time de futebol, o médio-centro. Em inglês, center half.

Chorro. Ladrao.

Curda. Embriaguez. Também a pessoa bêbada é chamada “curda”.

Dogor. É a palavra gordo com suas sílabas invertidas. A gíria chamada lunfardo tem quase uma sub-gíria chamada “berre” ou “vesre”, que consiste em falar ao revés, trocando as sílabas das palavras.

Escabio. Álcool. Assim o verbo escabiar significa tomar bebidas com álcool.

Escolaso. Jogos de azar por dinheiro (loterias, cartas, dados, corridas de cavalos, etc).

Faso. Cigarro.

Fueye. Deformação da palavra fuelle (fole, em muitas partes da Argentina a letra “ll” é pronunciado como “y”). O bandoneón é popularmente chamado fueye.

Gallego. Popularmente chama-se “gallegos” a todos os espanholes, nativos ou não da província de Galicia.

Gallina. Galinha. Popularmente chama-se “galinhas” aos fãs do clube River Plate.

Guitarrero. Guitarrista popular, geralmente sem base acadêmica.

Guitarrón. É um violão de som mais grave que o violão tradicional. Seus cordas vão desde a sétima até a segunda (em violão tradicional vão desde sexta até primeira).

Merca. Droga em geral, embora pode referir a cocaína em particular. Merca é a primeira parte da palavra mercadería (mercadoria). Quem “toma merca” consome drogas.

Mesopotâmia argentina. Região geográfica da Argentina composta pelas províncias de Entre Rios, Corrientes e Misiones. Faz fronteira com o Uruguai, Brasil e Paraguai.

Mina. Mulher.

No queria más Lola.  Lola era o nome de uma bolacha que no início do século XX era parte da dieta dos hospitais. Assim, quando alguém estava perto da morte, dizia-se “Este não quer mais Lola”. Desde então, a frase se aplica a qualquer pessoa que não tem vontade de continuar fazendo alguma coisa, ou simplesmente continuar vivendo.

Ojos de ponja. Olhos de japonês. Ponja é a palavra Japón com suas sílabas invertidas (Ja-pon, Pon-ja). Popularmente, o japonês é chamado “ponja”.

Pase inglés. Jogo com dados por dinheiro, o famoso “Craps” ou “Seven Eleven” dos casinos, chamado Sevelé no Uruguai.

Porteño. Habitante da cidade de Buenos Aires (embora também são chamados assim os habitantes da cidade de Rosario, talvez porque a palavra é derivada de puerto (porto).

Pulpo. Polvo. Apelido comum para os pianistas.

Retacón. Homem gordo e de baixa estatura.

Rusos. Popularmente chama-se “rusos” aos judeus.

Tanguero. Pessoa ligada ao tango como criador, intérprete, dançarino ou simplesmente como fã do gênero.

Tano. Popularmente chama-se “tanos” aos italianos.

Vieja. Carinhosamente, chama-se vieja (velha) ou viejo (velho) aos pais. Hoje, os jovens chamam “vieja” a qualquer pessoa a quem eles apreciam muito, embora seja um homem. É como dizer que essa pessoa é tão boa quanto uma mãe.

Dúo Fébula Y Aravenis : as guitarras do Prata

Dúo FébulaYAravenis

A proximidade entre os rios Guaíba, do lado de cá, e do Prata, do lado de lá, nunca foi distância para mim. Sempre olho a Argentina e o Uruguai com a densidade de afeto que merecem. A história da minha vida tem toda essa gana que os platinos possuem, e minhas origens também têm suas vidas enraizadas por lá antes de se estabelecerem aqui. E tenho muitos amigos nesses lados todos. O Marcelo chegou pelo irmão, ambos “periodistas” de turfe, o roteiro dos grandes prêmios pela América adentro. E eu, apesar de pai jóquei e treinador, nunca fui um turfista no sentido vivo da palavra, embora sinta um amor infinito pelos cavalos. E o pampa me desafia, o imaginário incendeia e tudo o mais. Se não entrei nas pistas de corridas, caminho pela música, pela literatura, gostos dos cafés e do movimento dos porteños e orientais, gosto das livrarias que desvendam os mistérios da noite com suas portas abertas, assim como gosto do nosso mar, da nossa arquitetura, na nossa harmonia musical tão diversificada em cada região, dos nossos criadores das palavras. E ainda posso pôr nesse gostar, o Chile, cuja história me sensibiliza, cujo povo me habita. o Peru, com seus mistérios e fascínios pelo desconhecido alimentado pelos incas, quéchuas, aymaras. A Bolívia e toda a essência de uma América que se constrói por seu povo que mesmo sofrido tece suas cores de forç e determinação. Sou um latino-americano nascido no estado mais ao sul do país, e que procura cada vez mais o sul deste sul que me envolve. Assim, é a música que me aproxima de tantos movimentos nessa direção. Agora, por esses primeiros dias de inverno, o Marcelo está em Porto Alegre. Na bagagem, histórias e histórias. E muita música. Trouxe, via e-mail, o Dúo que faz com Walter Daniel Aravenis. E podemos entrar em um universo de cordas que vibram tangos, milongas, canções. Amigos e com pelo menos dez anos juntos um acompanhando o outro, vão criando a seu modo um repertório acústico com a beleza espontânea da vida. É para todos os que aqui chegam que ofereço os sensíveis violões de Marcelo e Aravenis em um espaço chamado Guitarra a La Carta, local onde se vende violões. Uma viagem pelo Prata.

https://www.youtube.com/watch?v=qBequz7GFsQ – aqui um apresentação em uma emissora de rádio. Para quem deseja conhecê-los um pouco mais.

Hector Numa Moraes: um tributo à vida

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Meses atrás, quando de uma das idas de meu irmão Mário a Buenos Aires pedi a ele que trouxesse alguns cds que, infelizmente, não transitam no Brasil. De lá veio um presente enviado pelo amigo de todos os momentos Marcelo Fébula, um disco do Daniel Mendoza – está aqui no Chronosfer – que me deixou muito feliz por tudo o que ele significa e pelas convicções ali firmadas. E fui mencionando nomes que caminham pela mesma estrada e cometi uma injustiça. Não citei Hector Numa Moraes. E isso que recém vindo de Montevidéu havia trazido o seu disco Numa Moraes – antologia 1968-1973, uma regravação mais atualizada de dois de seus grandes trabalhos: de muchacho a muchacho e el mundo del nosotros.

Filho do lado de cá do Prata,  a um passo e meio da fronteira com o Rio Grande do Sul, Hector é desde sempre músico. O bandoneón e o violão clássico o acolheram desde criança até o dia em que conhece, aos 16 anos, o poeta Washington Benavides. No, para mim, o eterno e místico 1968 lançar Del amor, del pago, del hombre com a forte influência e inspiração no folclore do norte do país. A sua Tacuarembó está presente em Canto pero también puedo com as letras assinadas por poetas locais como Benavides, Walter Ortiz y Ayala e Circe Maia. E por aí foi sendo o seu caminho, voltado a gente da terra, à vida, ao social, ao comprometimento com a justiça. Benavides foi parceiro de Alfredo Zitarrosa, Daniel Viglietti foi um dos seus mestres. Numa Moraes, cumpriu o destino de todos que aqui na América sempre foram engajados em nome da vida: foi proibido, exilado, e no distante exílio holandês, depois de passar por Argentina e Chile, aperfeiçoou seu violão. Amadurecido, porém sem jamais perder o sentido do caminho escolhido é um nome que honra nosso Continente e a nós mesmos. Ouvi-lo é estar em consonância não apenas com o melhor da música, mas sobretudo, com a vida. Se forem ao Uruguai, não esqueçam de colocar na bagagem de retorno pelo menos um cd de Hector Numa Moraes.

www.youtube.com/watch?v=A-8YWoVM7bc

www.youtube.com/watch?v=5V7Aq5mxR4Y

www.youtube.com/watch?v=puf7CGa6uNo

Foto: fotoreportajeuruguay.com // http://www.hormigueando.com

Gracias, amigos Los Pingos

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Sexta-feira, 26 próximo, será o quinto mês da partida do meu pai. Ainda difícil de caminhar tanta a falta que faz. Por isso, relutei muito em ir ao Desafio entre Jorge Ricardo e Russell Baze, na foto acima antes do início das corridas e à disposição da imprensa. Voltar ao Hipódromo do Cristal pela primeira vez depois de o pai partir era ( e foi ) um peso que imaginava não suportar. Vitórias e derrotas, alegrias e tristezas ali foram compartidas entre nós, mais especialmente em seus últimos anos como treinador e que acompanhei passo a passo. Longas conversas, histórias, técnicas, táticas, treinamentos, como chega o cavalo nos últimos 400 metros, detalhes que fazem ou podem fazer toda a diferença em uma disputa ou na próxima. Depois, ele já aposentado, estivemos em San Isidro, Palermo, Maroñas, e cada um desses momentos foram especiais e sobretudo de ensinamentos. Assistimos ao GP Martinez de Hoz de 2005, vencido por Don Incauto, secundado por Latency, cujo nome no turfe platino é história. Lembro que o “viejo” Rossano disse após a vitória do filho de Roy e Inspiration: ” Quero esse para ganhar o Bento.” E alegre sorriu, sonhador e com ele também sonhei em vencer o Bento Gonçalves daquele ano. Ficamos apenas no sonho. Todas essas lembranças se ergueram com os fortes alicerces da saudade e havia decidido não ir. Meu irmão Mario, e os amigos Marcelo Fébula, com quem já havia conversado sobre música em uma de suas vindas a Porto Alegre, e Pablo Gallo, esse ainda não apresentado a mim, nos encontramos em um café no centro da cidade e em meio a charla decidi que iria. Na verdade, estava pronto, vestido a rigor, equipamento à mão e decidido com o não. Com eles, me senti mais à vontade. Ao grupo, mais atrde se incorporou Marco Antônio de Oliveira. Outra grande pessoa que faz com que o tempo flua com extrema naturalidade. E a decisão foi, claro, a de ir junto.

Por óbvio, no Cristal o oceano da ausência se fez imenso. Foi muito complicado ficar e conversar e fotografar. Não fiz um bom trabalho como jornalista, e pouco adiantou tudo o que o “Viejo” me ensinou. Ali estava o filho, não o profissional. Mas, fui fotografando, prestando a atenção em algumas coisas, olhando o público, identificando amigos, pessoas, e a tarde passou, se transformou em noite. E cada um seguiu seu caminho.

A maioria das fotos ficou abaixo da qualidade mínima de um profissional. E como escrever sobre um tema que para mim esteve sempre presente em minha vida e ao mesmo tempo não foi a área em que trabalhei.  Então, pedi socorro às áreas que conheço: música, literatura. E a ideia veio. A música de Belchior, tango, blues, e por aí decidi seguir. Fiz o texto, observando um e outro detalhe a mais ou a menos, a importância só pode ser conferida pelos turfistas, e aproveitei algumas das fotos que estavam pelo menos aceitáveis.

Para minha surpresa, o texto foi traduzido pelo Marcelo para o espanhol e aceito pelo Gustavo “Lopecito” Lopez do site Los Pingos de Todos, dos mais importantes de toda a América sobre o turfe. E, além da surpresa de ser publicado nos Pingos, uma outra me fez voltar no tempo e abraçar meu pai: uma foto em que estamos juntos em San Isidro. Mais uma vez, deixei de ser jornalista e o abracei com a saudade do filho que gostaria de ter Don Incauto em nosso maior Grande Prêmio.

Ao Marcelo, ao Gustavo “Lopecito”, mais que o meu muito obrigado, toda a minha emoção e toda a minha alegria por poder estar com meu pai outra vez, oportunizado pela sensibilidade de vocês. O meu mais profundo abraço.

Acessem http://www.lospingos.com.ar e estejam em dia com o turfe.

Foto: Chronosfer