O amigo de todos os momentos, Marcelo Fébula, jornalista e músico, chega aqui com um vigoroso texto desde Buenos Aires, onde vive, para enriquecer este Chronos. Aproveitem a bela narrativa. E, gracias, Marcelo.
Final
Que maneira de chover!
Ferro não esperou respostas para seu comentário meteorológico. Pendurou o casaco molhado em um cabide, colocou o guarda-chuva em um cesto de papéis e entrou na reunião que havia iniciado sem ele.
–Eu não sei o que faríamos sem as profundas reflexões deste homem –comentou Saldías.
–Ao sair da reunião, com certeza, nos dá outro pensamento elevado. “O que mata é a umidade”, ou algo assim –disse Galli enquanto acomodava pastas.
–“Tempo louco” –aportou sorrindo o mensageiro Fábio, que bebia café esperando por trabalho na rua.
–“Se você come melancia com vinho, morre”. “Não lave a tua cabeça quando chega o teu período” –adicionou Ernesto levantando seu dedo indicador.
–Há muito tempo que não chega meu período. Ficarei grávido? E também há muito que não lavo a minha cabeça –disse Saldías, perdendo-se pelo corredor escuro.
Eduardo sorriu apenas um pouco, meio apático. Para o almoço tinha engolido duas empadas em tempo perto do recorde, e não podia terminar de fazer a digestão. Aproximou-se até as janelas. No curto horizonte que lhe permitiram ver as silhuetas dos edifícios, notou uma linha escura. Aquele era o sétimo dia de uma chuva ininterrupta, que agora caía com força e em linha oblíqua, assemelhando fios tensos e vibrantes entre o céu cinzento e o chão.
–Que coisa estranha, não é? –Fábio olhava o céu, de pé a seu lado. –Esses flashes entre as nuvens. Dizem que são como faíscas, ou algo assim, a partir da tempestade. Ouvi no noticiário ontem, disseram que era um fenômeno muito raro.
Eduardo olhou mais uma vez e voltou para sua mesa. Retomou o trabalho enquanto um trovão sacudia os vidros e provocava exclamações entre seus pares.
–Que merda é isso que vem de lá? –perguntou meia hora depois Galli. Sua mão estava congelada na maçaneta da janela que queria abrir.
Eduardo se levantou de seu assento para observar somente quando notou gestos estranhos em algumas das pessoas que estavam perto de Galli. A linha escura que uma hora antes tinha vislumbrado entre os edifícios, era agora uma parede enegrecida e compacta que avançava sobre a cidade. Parecia algo vivo, pulsante, com vivíssimos flashes elétricos.
–Nunca vi uma coisa assim –disse Haydeé, parando o movimento circular da colher dentro de sua xícara de café.
Ernesto juntou-se a olhar.
–Não faça piadas Haydeé, você estava no big-bang.
–Diz minha mãe que estava assistindo a um relatório sobre a tempestade na cadeia CNN e de repente cortou-se a transmissão –informou para todos Fábio, segurando seu telefone celular no alto. –Agora há outros caras falando…
–Na CNN? –interrompeu Amelia, intrigada.
Saindo da reunião, Ferro atravessou a sala falando para o mensageiro.
–Vamos menino, corta essa comunicação, depois fala. Agora te prepara porque tem que sair para à rua com urgência.
Fábio hesitou, sua mãe continuava falando com ele por celular.
–Diz que é uma tempestade muito forte, ela recomenda que entremos em sintonia com o noticiário da TV ou procuremos notícias na Internet.
–Sim, claro –contestou Ferro. –Diz para ela que agora paramos de trabalhar e começamos a assistir a chuva na TV. Vem aqui rápido que vou te explicar os procedimentos que tu tens que fazer.
–É impressionante –comentou Galli como em transe, sem sair da janela.
–Parece que nunca viram uma tempestade –disse Ernesto, se esforçando para implicar que toda aquele assunto para ele não era nada extraordinário.
–Não virá um desses desastres, como nos filmes? –perguntou Gonzalito, levantando a cabeça de uma pilha de formulários pela primeira vez no dia.
–Filme-catástrofe? Inferno na Torre, Terremoto –começou a listar Amelia.
–Lançamentos –comentou Galli sarcasticamente voltando para seu lugar, sem deixar de olhar para o exterior.
–Amelia viu o filme Terremoto, mas em seu quarto, ao vivo –disse Ernesto.
–Eu recentemente sintonizei um muito bom filme na TV por cabo –interrompeu Saldías. –Tratava da aceleração de partículas.
–De que coisa? –perguntou Nora exageradamente desde seu canto.
–Vou te contar: vários cientistas estão fazendo umas experiências muito perigosas. Sempre há um monte de gente reclamando na porta do seu laboratório com grandes sinais, fazendo bagunça, mas os cientistas não dedicam nenhuma atenção a eles e continuam suas experiências. A história é longa, mas acabam pressionando um botão e então tudo foge de suas mãos, ocorre uma grande explosão que origina uma espécie de buraco negro onde tudo começa a desaparecer.
–Eu conheço alguns buracos negros onde desaparecem coisas –voltou para a conversa Ernesto.
–Quando vai ser o dia em que tu pare de fazer piadas de mau gosto? –o repreendeu Haydeé.
–Eu gostei muito de outro filme –retomou o tema Gonzalito. –Agora não me lembro do nome. É esse da onda gigante que cobre a metade dos Estados Unidos. Fica tudo congelado.
–Sim, eu olhei! –disse Ernesto quase eufórico, levantando a mão, como avisando que esta vez falava seriamente. –Ri muito na parte em que os norte-americanos perdoam a dívida externa de todos os países da América do Sul para poder se salvar escapando pela fronteira. Si algum dia acontece algo assim, ao primeiro gringo que mostre a sua cabeça no México temos que quebrar-lhe os cornos com um garrote.
A secretária menos amigável da Presidência da empresa atravessou a sala quase correndo, sem cumprimentar ninguém e fechando sua carteira.
–Parece que estamos indo para casa mais cedo hoje… –murmurou Amelia entre dentes.
Eduardo, preenchendo formulários, com o telefone preso entre o ombro e a orelha começou a marcar um número. Estava permanentemente ocupado.
Cerca das quatro da tarde a tempestade era tema exclusivo. As pessoas que falavam por telefone com parentes ou amigos exigiam silêncio com gestos pomposos e depois comentavam as notícias aos gritos. Com as vozes crescendo no mesmo ritmo da inquietação e nervosismo, o som ambiente do escritório parecia o de um restaurante na hora de maior movimento. Abstraído, Eduardo continuava tentando se comunicar com alguém, aumentando a violência para marcar o número e xingando baixinho.
De repente, a sala foi invadida por uma grande clareza. Todos ficaram em silêncio olhando para fora. A aterrorizante parede escura já estava chegando a cidade, mas incrivelmente as nuvens mais próximas interromperam sua pulverização de água e deixaram espaço para o sol. O repentino silêncio na sala fez com que todos ficassem cientes dos ruídos na rua, que os atingiu definitivamente quando Galli abriu duas janelas. O exterior era um caos: pessoas correndo, buzinas, sirenes, até mesmo algumas explosões.
Completamente alheio a tudo, Ferro deixou sua mesa batendo as mãos.
–Você pode acreditar? –falou para o ar. E como sempre ele fazia, se respondeu a si mesmo.
–Fábio, o senhor liga e avisa que deixa dois procedimentos sem fazer na recepção do prédio e vai para sua casa, por causa da tempestade. Já no retorna para aqui. Sim, pode apostar que não vai retornar! Hoje mesmo envio o telegrama de despedimento para ele, punheteiro de merda!
–Cala a boca, Ferro –falou o gerente do andar, com um gesto de aborrecimento, aparecendo de repente as suas costas. –Vocês tem desbloqueado Internet em todos os computadores –anunciou. –Em quinze minutos há reunião de todo o pessoal.
Diversos funcionários se entreolharam, confusos.
–Venham –disse a recepcionista espiando pela porta. Ela estava chorando.
Eduardo insistiu mais uma vez marcando o número de telefone enquanto olhava a seus companheiros sairem confusamente da sala. Ele foi o último a deixar sua posição.
Os empregados ficaram em silêncio em torno da TV, na recepção da empresa, sintonizada em um canal de notícias. As imagens passavam em ritmo vertiginoso: cidades devastadas por ventos de furacão, prédios caindo, barcos afundando-se nos portos. Os jornalistas tinham perdido a formalidade, cruzavam-se na frente das câmeras com rostos cheios de medo e hesitavam continuamente para citar a fonte das imagens.
–Quando vai chegar todo esse desastre aqui? –perguntou Haydeé, demudada.
–Os jornalistas disseram há um momento, que pior vai acontecer na América Central, que a tempestade não vai chegar com tanta força ao sul –comentou Gonzalito.
Um dos apresentadores da TV anunciou que chegavam imagens inéditas de Miami. Primeiro olhou-se uma enorme ponte no momento do colapso e, em seguida, veículos flutuando nas ruas principais da cidade, que pareciam rios furiosos.
–Parece Genova –disse Ernesto.
–Veneza, burro –corrigiu Saldías.
No elevador central apareceu o dono da empresa; tinha transformado seu gesto neutro habitual para uma expressão desengatada.
–Senhoras e senhores, um momento de atenção, por favor. A reunião foi cancelada. Vocês podem se retirar a qualquer momento. Em dez minutos eu saio com meu carro para zona norte, ainda tenho espaço para duas pessoas.
Momentos depois tudo era uma grande confusão. Alguns funcionários cruzavam-se subindo e descendo escadas, tentando organizar planos para sair para rua em grupos, aproveitando os poucos veículos disponíveis. Outros falavam por telefone aos gritos, outros olhavam sites da Internet com as mãos na cabeça. O terror e o desespero pairavam no ambiente como uma névoa espessa.
Eduardo olhava a tela de seu computador enquanto continuava marcando uma e outra vez o mesmo número de telefone. Ernesto, que vagava desorientado pelas mesas, elevou a cabeça sobre o ombro de seu companheiro.
–Tu que site de Internet está… Não, não irmão. Tu está enfermo –disse distanciando-se com um olhar alucinado.
Mas Eduardo continuou como se nada ocorresse, sem prestar atenção em outra coisa. Só deixou o telefone quando sentiu muito perto, os gritos histéricos de duas companheiras de trabalho completamente superadas pelo pânico. Foi para a janela e observou a rua. Já estava escuro. Viu pessoas que, entre a água e o vento furioso, quebravam portas e forçando aberturas saqueavam casas e locais comerciais. Deslizando-se com cuidado conseguiu chegar ao banheiro. E ai ficou até que não escutou mais gritos e assumiu que não havia ninguém na empresa. Saindo cautelosamente encontrou-se com Saldías, que olhou-o confuso.
–O que tu está fazendo aqui, Edu?
–O mesmo te pergunto eu.
–Estou saindo do prédio. Ofereci a Nora vir e tomar refúgio contra a tempestade em minha casa. Enviou-me a cagar, como sempre. Foi com o motociclista, que passa perto de onde ela mora. Com esse assunto perdi um monte de tempo.
–Tenha cuidado, o ambiente está ficando muito feio na rua.
–Sim, eu sei. Já observei. Mas estou saindo acompanhado pelo militar de segurança do edifício, que vai para o mesmo lado. Com uma arma, a aventura é outra coisa. Quer se juntar a nós?
–Não, obrigado. Primeiro tenho que fazer uma ligação, depois vou para casa. Tome cuidado lá fora.
–O mesmo digo. Tchau Edu, oxalá nos encontremos novamente.
Saldías abraçou-o animado e com solenidade. Depois desapareceu pelo oco das escadas.
Eduardo foi para sua mesa, pegou o telefone e começou a discar novamente; o surpreendeu o som da chamada tanto como um terrível ruído no lado da entrada.
–Olá? –disse a voz que esperava escutar no telefone.
–Olá Paredes.
–Mudo? É você? Escuto muito longe. Estou no caminho para as montanhas com minha família, a qualquer momento o sinal de meu celular será cortado. Você não imagina a bagunça que é o caminho. Quando descobri o que estava por vir imediatamente peguei o carro. Não sei onde vamos terminar, pero acho que nesta corrida o cavalo que parte retrasado é morto. Tu onde está agora?
–No escritório. Espera um momento por favor, não corte.
Eduardo cobriu o bocal do telefone com a mão. Estava cercado por três homens. Certamente eles tinham sido os que causaram o forte barulho no lado de entrada.
–Onde está o dinheiro? –perguntou o mais jovem brandindo um pau.
–No décimo andar. Aqui vocês não vão encontrar nada.
–Isso nós vamos ver depois–disse o garoto com um sorriso horrível, e saiu correndo seguido por seus companheiros.
Eduardo olhou como eles saíram e retomou a comunicação.
–Olá.
–Sim, aqui estou ainda.
–Escuta Paredes. Na Internet não consigo encontrar nada. Hoje a primeira corrida estava programada muito cedo. Houve a disputa?
–…Que? Mas você onde mora, dentro de uma garrafa térmica? Sabe o que está acontecendo? O planeta está perto do desaparecimento e você pergunta se disputou a primeira corrida de hoje!
–Responde Paredes, acho que não temos muito tempo a perder com o sinal.
–Olha para o que me liga, você não tem vergonha.
–Paredes…
–Sim! Mudo de merda e a puta que pariu! Sim, disputou-se e ganhou esse burro que tu apostou ontem, com dividendo de 30 ao vencedor! Depois a reunião hípica foi suspensa. Tu esta conforme agora?
–Isso queria saber. Viu? Não era tão difícil.
–Você quer cobrar? Já volto para pagar-lhe. Não me faça rir, Mudo!
–Eu só te liguei para saber o resultado da corrida, não me importo com o dinheiro.
–Ha ha ha! Você realmente fica chateado pelos cães. Justamente o dia em que tem a grande oportunidade de estragar ao teu banqueiro de apostas, chega o fim do mundo.
–Porque zomba de mim?
–Perdão, perdão. Desculpa-me. O que acontece é que, se você conta esta história, ninguém acredita. Além disso, sou honesto contigo, tenho um medo terrível e estou muito nervoso. Um minuto atrás quase engoli um esgoto de cimento do caminho.
–Tchau Paredes. Sorte.
–O mesmo para ti, Mudo.
Eduardo desligou. Foi até o escritório de Ferro e abriu o armário onde sabia que encontraria um bom uísque e charutos. Voltou para sua mesa e começou a escutar no computador o compacto de Miles Davis, que costumava ouvir quando trabalhava horas extras sozinho na sala.
Voltou a ficar perto das janelas, que tremiam e ameaçavam quebrarem-se pela força do vento, como estava acontecendo em edifícios vizinhos. Na rua voavam coisas no meio de redemoinhos furiosos. Viu passar um grande dossel que desapareceu nas alturas depois de quebrar duas colunas de iluminação, arrastando um emaranhado de cabos entre explosões. Lá embaixo duas árvores caídas tinham esmagando um caminhão de bombeiros, que com as luzes acesas e a sirene ativada parecia pedir socorro.
Na sala ingressou correndo um grupo de pessoas vociferantes. Começaram a virar as mesas e esvaziar o conteúdo das gavetas no chão. Entre eles Eduardo reconheceu ao garoto do pau, que se aproximou novamente. Estava quase sem fôlego.
–Entrega o álcool, tolo –disse ele acenando a mão livre.
Eduardo colocou mais uísque em seu copo e entregou-lhe a garrafa. –Encontraram o dinheiro? –perguntou.
O garoto pareceu confuso com a pergunta. Respondeu depois de tomar um gole, manchando o peito de sua camisa.
–O grande cofre deve ser aberto com um maçarico –explicou. –Quando a tempestade passe nós vamos trazer um.
Eduardo riu.
–Sim? Quando passe a tempestade tu e teus amigos abrirão o grande cofre de São Pedro.
–Você é engraçado? Quer que eu quebre sua cabeça, babaca?
Ignorando a ameaça, com uma mistura de tristeza e fadiga, Eduardo empurrou o pau que bloqueava seu caminho e foi novamente para as janelas, no canto. O enésimo trovão foi precedido por um brilho branco ofuscante, e depois de dois flashes cortou-se a luz. Lá fora a devastação acelerava seu passo a cada minuto, iluminada pelos raios. Desde o computador, John Coltrane construía um de seus impressionantes solos de saxofone.
Marcelo Fébula
Revisão do texto e tradução: Maria Irene Soares de Freitas