Turfe: vitórias e derrotas, a história continua nas pistas de corrida

Rio Volga 1

O tempo é como uma corrida de cavalos. Está sempre presente. Correndo. A saudade percorre outros caminhos. Não fica apenas na marca do calendário da memória. Instala-se em nossa alma e nela faz morada para todo o sempre. Anda de mãos com tudo o que sentimos e vivemos e a cada dia cresce e acompanha as estações com a delicadeza desse viver. Hoje, 26, mais um mês da partida do pai. Mais um mês que avança e mais um mês em que a saudade cresce. Sem fim.

Rio Grande 1

O calendário do turfe do interior do Rio Grande do Sul foi marcado por grandes disputas. Em especial, dois hipódromos acolhiam no primeiro semestre do ano dois grandes prêmios que rivalizavam em importância aos disputados na capital. Rio Grande, hoje apenas na lembrança, recebia na Vila São Miguel no verão para o GP Cidade de Rio Grande (foto acima). Algum tempo depois, Pelotas, na Tablada – até os dias de hoje – o GP Princesa do Sul. O público tomava conta dos hipódromos, as cidades paravam, e não se falava de outra coisa. Grêmio e Internacional nesses dias eram apenas dois clubes de futebol caseiros, o que somente mudaria a partir da segunda metade da década de setenta.

Rio Grande 3

No verão de 1960, Lord Chanel e Mário Rossano não tomaram conhecimento do potro promissor Saitan, do favorito, Guindo e do veterano e raçudo Arizu. Vitória maiúscula. Vitória que não deixou nenhuma dúvida aos presentes a Vila São Miguel tomada de turfistas e apreciadores de corridas. E credenciado por essa vitória, partiu para o GP Princesa do Sul. Na condição de favorito, o tordilho passeou pela pista da Tablada. Os 3.000 metros estavam sendo rigorosamente cumpridos com a valentia e a força que o filho de Lord Antibes sempre exibiu em suas apresentações. Ao jóquei, o trabalho de leva-lo a linha de chegada. Corridas de cavalos, no entanto, não são uma ciência exata. Em uma prova, não importa a distância a ser percorrida, tudo pode acontecer. E naquele dia, ao virar a curva final, a 400 metros de chegar em primeiro, Lord Chanel e Rossano foram surpreendidos por um uruguaio cuja campanha até então não era nada animadora. Componente, sob a condução do também uruguaio, Luis Perez, trouxe o filho de Enterprise em Scala, em fulminante atropelada e alcançou o tordilho nos metros finais e cruzou o disco como vitorioso.

Princesa 1

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Nas fotos acima, o final da prova, Componente ultrapassando Lord Chanel (mais acima), e a acolhida ao vencedor pelos proprietários e público (acima). A partir desse dia, nasceu o folclore do Grande Prêmio. O que se ouvia falar era simples: Rossano havia já tirado o boné, sentindo-se vencedor tamanha era distância que possuía em relação aos demais. Rossano relaxou e deixou Lord Chanel galopar sem fazê-lo correr até o final. Enfim, as histórias foram sendo criadas em torno da derrota muito mais que a vitória espetacular do conduzido por Luis Perez, o que foi e ainda continua sendo uma injustiça com quem venceu. O pai sempre contou que jamais, em momento algum, tirou o boné ou relaxou. Componente venceu porque estava melhor naquele dia e na distância dos três quilômetros. “Se disputássemos dez corridas, venceria nove. A única que poderia perder, perdi”, me disse em nossa conversa em 2011. A história, entretanto, às vezes escolhe o folclore como verdade absoluta. Assim, o Princesa de 1960 tem essa marca eterna.

O testemunho de quem esteve lá:

Rio Grande 2

Acompanhávamos o pai em suas idas ao interior disputar os grandes prêmios. Passávamos o verão no Cassino, em Rio Grande, e depois íamos para Pelotas. Período de férias escolares, na verdade éramos do jardim de infância, e minha irmã ainda sequer frequentava-o. 1960. Meus pais, meus irmãos e meus avós maternos, a família do pai é de Rio Grande, aproveitavam esses meses para encontros. E nós, pequenos, nos metíamos entre o público e assistíamos as corridas. Vibrávamos mesmo sem entender bem o que significava uma corrida de cavalos. ver o pai, o tordilho, a ferradura de flores, nos deixava felizes. Na foto acima, estou vendo o retorno do vencedor em Vila São Miguel. Único lugar onde poderia ficar em meio a adultos. Meu irmão também estava junto. E pouco acima de nós, o cunhado do pai, Dirceu Antunes, batendo palmas. Tenho presente esse momento, e olhando a foto agora, desato o nó da saudade. Mais tarde, lembro de Pelotas. tenho vivo o final da disputa, e posso assegurar com toda a inocência dos meus seis anos incompletos da época, o pai perdeu porque o vencedor foi melhor. Não vi o “Viejo” tirar o boné, ou “relaxar”. Perdeu, simplesmente. Claro, a Tablada não é assim como a foto de Rio Grande. E não estávamos junto a cerca. Com a minha mãe e meus avós, estávamos nas tribunas. No dia seguinte, no retorno para Porto Alegre, encontramos Luis Perez. Ouvi quando ele disse que estava surpreso com a própria vitória, e o pai, triste e tranquilo, disse que era da vida vencer e perder, e que de alguma maneira fizeram história. É verdade. Jamais esqueci esses momentos. E os guardo em mim com emoção.

Agradecimento especial ao meu irmão Mário pelas fotos do seu acervo, que gentilmente me enviou. E a minha irmã Ana, por também ter vivido essa história.