A cafeteria não tem cheiro de café. A ponta vermelho−alaranjada do cigarro vibra sem compasso algum. É uma pequena luminária movida a sopro humano. Então, a fumaça invade o espaço, contorna as xícaras, os copos de vinho, desenha círculos e formas que se dissipam com a mesma velocidade com que foram geradas. A tosse do velho sentado na última mesa é um acorde desafinado, misturando−se às vozes distorcidas. Soa às vezes como as badaladas de um sino anunciando a missa das seis da manhã. O cheiro contaminado do Gran Café vai incinerando um a um os bocejos da madrugada.
O brilho do vestido queima as retinas no contraste com o terno preto que o enlaça a cada movimento da dança. A carne sem o apetite de muito antes sustenta o corpo listrado de veias azuladas nas pernas magras, amparadas pelos saltos desproporcionais do sapato. O dançarino aperta a cintura expandida em suas fronteiras, e deixa−a escorregar suave até um palmo próxima do chão sujo do palco. Ergue−a em gesto decidido, ocupando o espaço vazio à frente, enquanto o bandoneón atravessa mais uma nota, Piazzolla por certo encolhe−se no túmulo pela sétima vez nesta mesma noite. E o cheiro contaminado vai cortando em pequenas fatias o tango tocado pelos músicos improvisados de músicos.
As luzes apagadas escondem por instantes as várias névoas expelidas por pulmões cansados. Um ponto aceso denuncia essas imperfeições, o vinho amargo não desce mais como a doce melodia de uma paixão, os tecidos se desfazem na tessitura do que foram. A noite esvazia lentamente as horas. As mesmas que aguardam impacientes os primeiros raios da manhã, despertando minutos e segundos em frações.
O casal, na eterna troca de olhares, tece mais outro movimento. E mais outro, e mais outro. E então, como uma explosão infinita de estrelas, apagam a chama dos corpos e dos copos. O bandoneonista fecha o instrumento, enquanto o piano respira pelas mãos enrugadas do viejo Manolo até o curvar das costas. O cuarteto curva-se para ninguém. Nem mesmo a lenta nódoa do cigarro resistiu ao horizonte.
Gardel sorri, pega o chapéu, e abre a porta. O tempo continua o mesmo de sempre.
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Foto capturada no site http://www.lunalatina.it