UM AMOR INESQUECÍVEL
Lopecito (*)
O dia em que completei dezoito anos lembro que meu pai olhou para mim e disse:
– Filho, começa outra etapa. Você já é um adulto.
Honestamente eu sentia-me o mesmo babaca do dia anterior, mas tentei interpretar o mandato.
Ainda imerso em uma ditadura militar atroz que durou toda a minha adolescência mas começava a lançar as hurras, eu me perguntava o que poderia fazer de diferente na minha vida a partir desse momento.
As respostas não demoraram em chegar a minha cabeça. Tendo dezoito podia ir ao cinema para ver filmes com mulheres nuas sem esgueirar-me na entrada (os poucos seios que permitia olhar o censor Tato); entrar no cassino com o documento de identidade fixado na testa como se fosse o ás de espadas e, por que não, conhecer um hipódromo.
Assim foi como em finais de 1981 fiz minha primeira experiência no turfe e, como você pode imaginar, não parei nunca mais.
Entrar no velho Palermo era como ir para escola. Sentava-me nos degraus do Paddock, a poucos metros da coluna desde onde as pombas descarregavam bombas impiedosas sobre os adventícios, e meus parceiros de arquibancada eram sempre os mesmos: Horacio, Daniel, Coco, Pistola, Mura, Paul y Walter. Horacio era por vários corpos o maior do grupo e nunca tivemos a coragem de tratá-lo com muita confiança. Evidentemente não era velho, mas estava feito um papiro. Jamais o vimos com outro elemento de estudo que não fosse o Programa Oficial, e quando falava de corridas impunha um respeito mortal. Na realidade, só pela casualidade sabíamos o seu nome. Pra nós era simplesmente “O Catedrático”.
Se falávamos de jóqueis, o cara os tinha visto correr a todos: Legui, Jara, Nardi… Bem, não vou citar a todos. Porém, tinha uma debilidade: Batruni.
Para O Catedrático, José Luis Batruni era o jóquei mais completo que tinha visto y cuidado daquele que tivesse a audácia de discuti-lo. Uma vez tivemos que levá-lo para a enfermaria da raiva que tomou com um fulano que lhe fazia piadas.
Eu não tinha visto na minha puta vida o Grande Prêmio Jockey Club que “O Polvozinho” Batruni tinha vencido esse mesmo ano com o cavalo Tello, mas ele me contou a corrida tantas vezes que… Bom, não o contava, o atuava. Num segundo montava-se sobre o Programa que colocava entre suas pernas e com seu boné batia uns chicotes impressionantes. Comovia, eu juro.
Ele nos acompanhou dez anos no mesmo lugar e me ensinou tudo o que os livros não ensinam, até que uma tarde simplesmente desapareceu. Naqueles tempos sem telefonia celular de pronto descobrimos que incrivelmente ninguém sabia onde morava nem como contatá-lo. Tentamos, mas nunca mais voltamos a vê-lo. Durante anos, cada vez que olhava para Avenida Dorrego esperava ver o boné cinzento entre a multidão. Acreditamos no pior final.
Uma manhã de 2011 eu esperava em um desses consultórios médicos onde há trezentas portas e atendem mil especialidades, viu? Quando de repente meu coração se acelerou.
Sentado ao lado de uma mulher um pouco maior do que eu, um velho muito velho e em uma cadeira de rodas não levantava os olhos do chão.
Tinham passado mais de vinte anos e o boné agora era verde, mas esse era O Catedrático.
Saí catapultado, cumprimentei rapidamente a mulher, me abaixei e lhe disse:
– Oi Horacio, sou Gustavo. Se lembra? Do Hipódromo de Palermo!
Nada…
Tentei com um par de nomes das pessoas daquele grupo, mas ele nem sequer me olhou.
A mulher apresentou-se como Laura e me contou que depois de dois AVCs Horacio nunca tinha logrado se recuperar. Hoje tinha 88 e já desde dois anos atrás quase não vivia momentos de lucidez. Nem sequer lembrava-se dos nomes de seus filhos. Horacio, sempre sem olhar para mim, disse baixinho algumas frases sem sentido nenhum.
Cumprimentei-os com uma tristeza que me encolhia o coração e voltei ao meu lugar.
Horacio e Laura entraram para ver o neurologista. Minha cabeça era um turbilhão. Chegou o meu turno com o oftalmologista, mas o deixei passar. Você me entende, não? Precisava ver ao Horacio pela última vez.
Esperei.
Quando eles saíram me acerquei para cumprimentar novamente. Voltei a me curvar para ficar na altura daquele rosto e joguei o movimento de xadrez que aqueles minutos tinham-me permitido elaborar:
– Horacio, que montaria Batruni! Não é?
Levantou a cabeça lentamente, olhou nos meus olhos por alguns segundos e respondeu apenas balançando a cabeça:
– O Polvozinho.
Lagrimando expliquei a Laura o que tinha acontecido, e choramos juntos.
Continuei tentando, porfiado, com Tello, L’Express, mas sem sucesso. O Catedrático já tinha voltado a se despedir.
Hoje ainda fico emocionado pensando naquele “volta e volta o churrasquinho” do Paddock, naquele suco escuro que o Oviedo puxava do seu tambor metálico e nos vendia como café, na sexta edição do periódico Crónica na saída com “A tragédia de hoje!”, nos motoristas de ônibus que na porta gritavam “Vamos para Liniers! Vamos para Liniers!” E, claro, vejo ao Horacio montado no programa e batendo chicotes com seu boné cinzento.
Pronto para fechar estas linhas, vem a minha mente aquela música de Los Charros e cantarolo: “Um amor como o nosso, não deve morrer jamais”.
Notas
– Miguel Paulino Tato foi um jornalista e crítico de arte nascido em Buenos Aires. Dirigiu entre 1974 e 1980 o Ente de Classificação Cinematográfica e foi considerado o máximo censor da história do cinema argentino.
– Legui, Jara, Nardi… Históricos jóqueis do turfe argentino. Irineo “O Polvo” Leguisamo, Eduardo Jara, Oscar “Pocho” Nardi.
– Tello e L’Express foram grandes cavalos de corrida guiados pelo “Polvozinho” José Luis Batruni.
– Durante muitas décadas, na porta do Hipódromo de Palermo se estacionavam longas fileiras de ônibus que transportavam passageiros para distintos bairros de Buenos Aires como Liniers, Boedo, Flores, etc.
– Los Charros é um grupo musical argentino, da província de Chaco.
(*) Lopecito, o autor do conto, é o criador do blog “Los Pingos de Todos” que funcionou durante dez anos. Atualmente colabora no Hipódromo de Azul, na província de Buenos Aires.
- Hoje 26, sempre ao meu lado, a saudade pede um café, escuta Piazzolla, e começa a olhar com os seus olhos tranquilos os meus, que acolhem um mar de tristeza, água e sal. No infinito, meu pai e meu irmão, por certo conversam sobre a vida, o turfe, a ausência aqui e, quem sabe, da saudade de todos nós. E dos amigos de tantas idas e vindas neste universo das corridas de cavalos. E vem da Argentina, de Buenos Aires, este conto que abraça os dois. Escrito pelo Gustavo “Lopecito” Lopez, Um amor inesquecível é desses momentos que chegam para ficar. Amigo, que a geografia impediu até agora de abraçar, não apenas esteve com o Mário irmão, como me recebeu no seu Los Pingos de Todos, sobre turfe, naturalmente. O meu abraço de muito obrigado a ele, ao Marcelo, ao Pablo, e ao Marcos Rizzon do http://www.jornaldoturfe.com.br/ , onde pela primeira vez este conto encontrou casa. (a música é escolha deste Chronos)
Momentos inesquecíveis de uma amor inesquecível! Abraços!
O turfe é um universo incrível para quem gosta de cavalos de corrida. Pura adrenalina. Muito obrigado. O meu abraço.
Muy buena elección… Un gran abrazo!!!
Hoje é um dia complicado para mim, mas essas lembranças felizmente ficam e Piazzolla é maravilhoso e a história do Lopecito é legal tem tudo a ver com meu pai e irmão. Obrigado, Cláudia. Meu abraço.
Sí, leí que hoy es un día especial para vos… Ese cuento y esa música son una buena manera de recordarlos. Un abrazo!
Gracias!
Que conto! Na vida sempre têm momentos que não esquecemos. Abraço 🙂
É verdade e neste texto o Lopecito foi muito feliz. Muito obrigado. Meu abraço.
🤗
As recordações, mais racionais ou mais afectivas, são uma espécie de oxigénio que entra em circulação. Mesmo que doam, fazem-nos sentir mais vivos!
Depois de um dia mais difícil…o dia seguinte é sempre um pouco melhor!
e a gente segue a vida por eles, em honra a eles. muito obrigado. abraço fraterno.
Belíssimo conto.
Que a saudade, que nunca nos abandonará, seja delicada e não machuque. Abraços!
Esse dia(26) é muito complicado para mim e no próximo setembro é o primeiro ano da partida do meu irmão. Ainda dói muito. A vida segue e eu também tenho que seguir. Muito obrigado, Eduardo. Abraços.
Fernando, es un orgullo muy grande para mi ver este cuento publicado en tu sitio, y si sirvió como homenaje para nuestro querido Mario es también una enorme alegría.
Un abrazo enorme y mi agradecimiento a quienes dejaron tan lindos comentarios.
Lopecito és da nossa família. Estar aqui neste Chronos é alegria para mim e para o Mario. Abraço imenso.